A alma - Platão

[Sócrates] – (...) decerto não aceitarás, nem dito por ti mesmo, que, sendo a harmonia algo de compósito, possa algum dia ter existido antes desses mesmos elementos que a deverão constituir... Ou será que aceitas?
[Símias] – Claro que não, Sócrates – disse.
– Ora vês – prosseguiu –, que é exactamente o teu caso quando, por um lado, defendes que a alma existia já antes de entrar numa forma e num corpo humano e, por outro, afirmas que é composta... de coisas que ainda nem sequer existiam? Na realidade, a harmonia a que tu comparas a alma nada tem a ver com esta, pois primeiro vem a lira, as cordas, os sons ainda não harmonizados, e só por último é que ela se constitui a partir de todos eles, para ser a primeira a desaparecer. Ora parece-te que uma tal concepção esteja em consonância com a anterior?
– De modo nenhum – respondeu Símias.
– E, no entanto, se há assunto que exija consonância é bem este da harmonia...
– É um facto – admitiu.
– Consonância que no teu caso se não verifica... Mas vê lá, antes de mais, por qual das ideias te decides: a de que a aprendizagem é uma reminiscência, ou a de que a alma é uma harmonia?
– De longe pela primeira, Sócrates! Quanto à última, nada tenho na realidade a aboná-la: baseei-me tão-só numa verosimilhança, numa plausibilidade formal, que é com certeza a origem desta convicção na maior parte dos homens. Mas eu próprio sei por experiência quão falazes são estas demonstrações fabricadas a partir de meras verosimilhanças, e a que erros nos induzem, seja na geometria, seja em qualquer outro domínio, quando mal nos precatamos contra elas! Pelo contrário, esse argumento da aprendizagem e da reminiscência assenta num pressuposto que merece ser tido em conta, uma vez que equaciona a existência da alma, anteriormente ao nosso nascimento, com a desse tipo de realidades que a ela pertencem e que genericamente intitulamos de «realidade em si».
Fédon -  Ed. Minerva, 2001, pp. 95-96