Do mito à Filosofia: continuidade ou ruptura?

O mito exprime o conhecimento inicial que homem tem de si e do meio ambiente – natural e social – que o rodeia. Isto quer dizer que ele transporta dentro de si: conhecimentos empíricos, receitas práticas, técnicas e princípios normativos, como os princípios morais, que é aquilo nos dizem o que se deve fazer ou não. Tudo isto, no mito, está envolto numa linguagem especial – linguagem do mito –, numa simbologia especial que respira uma atmosfera de mistério, de respeito e de sentimento. Há reverência – por isso o mito é muito estático; há respeito – porque o mito está em simbiose (ligado) com a religiosidade e os deuses primitivos; todo o mito está percorrido pelo sentimento e pela emoção porque existe uma comunhão do homem primitivo que, note-se, não só recita e decorou os mitos, como acredita e participa nos mitos através de todo o tipo de rituais e de crenças.
Isto serve para dizer, como Gusdorf afirma, que o mito exprime o conhecimento inicial do homem. Ora o que se passou com os Gregos não terá sido diferente. Os mitos que encontramos nas obras de Hesíodo, nos poemas homéricos e em toda a tradição religiosa, desde todo o panteão dos deuses (Zeus, Hera…Atena, Hércules) até aos mistérios, levam-nos a pensar que estas crenças terão forçosamente de ter sido o ponto
de partida da reflexão. Eles – os mitos –, e isto é um facto, prolongam-se em muitos conceitos que encontramos nos primeiros filósofos e na própria explicação científica como é o caso de ideia de Lei, jurídica ou natural.
Imagine-se que se começa com um mandamento moral-religioso a que se deve obedecer. Esta é uma lei imperativa a que o homem e a natureza têm de obedecer pois, de outra forma, desagrada-se aos deuses. Depois, com os primeiros filósofos, que já não acreditam na subordinação a esses mesmos deuses, esses princípios mantêm-se, só que agora para eles quem comanda são as necessidades e as forças exclusivamente naturais. Isto quer dizer que se mantêm muitas vezes as palavras e até os conceitos mas dá-se a esses mesmos conceitos uma interpretação diferente, racional, quer dizer, tenta-se explicar os
fenómenos através de princípios que todos podem observar e verificar, isto é, princípios naturais. Será que eles existem? Bem, estes conceitos são formas de unificar a diversidade com que olhamos o mundo, e de fixar a permanência no meio das coisas que se transformam rapidamente, não sujeitas às opiniões de qualquer um nem aos caprichos disto ou daquilo.
Para finalizar, o que encontramos nos primeiros filósofos é a tentativa de explicar o mundo, agora já chamado Cosmos, a mudança e a transformação das coisas através da procura de uma arché = princípio. Esses princípios explicativos foi antes, porventura, originados no mito mas, agora, são o produto de uma explicação ponderada resultado de uma observação cuidada dos fenómenos naturais e de uma ideia que unifica os fenómenos. Agora, o que o filósofo quer é descolar do mito, procurar uma ideia de unidade que tanto pode ser uma lei como uma nova substância, por ex. os números ou os átomos, ou um novo princípio, por ex. a relação amor-ódio, que é principio da polaridade dos opostos. A diversidade, o movimento, a transformação “assustavam” o homem primitivo que não sabia o por quê das coisas, a sua razão e a sua origem. A morte, a destruição, aterrorizavam este homem muitas vezes indefeso perante a enormidade e a
potência das forças que o rodeavam. É muito natural que ele projectasse os seus sentimentos naquilo que exprimia como explicação. Agora, na nova situação, ele quer distanciar-se de tudo isto: tenta compreender essas forças criando novas ideias, reflectindo em soluções que ele próprio diz que é capaz de dominar e, com isso, dominar as forças da natureza tal como os primeiros deuses faziam. Se pensarmos bem, não será então o homem a ocupar o papel dos deuses na explicação mítica?
Talvez! Mas o que importa é o de pensarmos na pergunta inicial: Mito, continuidade ou ruptura? O que parece que aconteceu é que os primeiros filósofos se aproveitaram do mito, da sua linguagem e de alguns dos seus princípios que agora podem ser aplicados à nova ordem, chamada racional.
Assim, houve continuidade, pois ainda se mantiveram parte da linguagem e mesmo algumas estruturas como a ideia de lei, de necessidade e de causa, …. mas houve, também, ruptura porque, agora, o homem deixou de dar crédito ao mito e passou a ser ele a reflectir, a pensar, e a querer o domino a natureza.
O homem, digamos o filósofo e o cientista, – o homem racional em geral – o que procura são explicações que sejam, agora, universais, isto é aplicáveis independentemente do tempo, da geração e do espaço de onde partiram, ao contrário do mito que possui um tempo e um espaço muito próprios (i.e. sagrados).
F.Rua - Resumo histórico: As Origens e Carácter da Filosofia Grega in http://bancodameditacao.com.sapo.pt/fil_10