Ética e política - por José Manuel Santos

O conflito entre ética e política, ou, mais explicitamente, entre consciência moral e razão de estado, é antiquíssimo. Na Antigona, de Sófocles, esse conflito foi magistralmente levado à cena. A ordem política acaba por levar a melhor sobre a revolta da consciência moral que teimou em cumprir o seu dever; a vitória amarga do político é, ao mesmo tempo, a legitimação do uso da violência por parte dos representantes legítimos do estado (condenação à morte da heroína).
Numa tentativa de resolver um conflito a que o trágico confere a fatalidade do destino, os pensadores antigos (Platão e Aristóteles) encaram a ética e a política como estando numa relação de continuidade e unidade. Em Platão o rigor e a bondade da capacidade de comandar a si próprio, relação ética, é transferido para o comando exercido sobre os ``muitos'', na relação propriamente política. Por outro lado, o principal objectivo do político é ``tornar os cidadãos (eticamente) melhores''. Em Aristóteles a unidade entre ética e política está em que ambas são ciências, e práticas, do bem, cujo fim é a eudaimonía ou vida boa. O bem colectivo (da pólis) é, de certo modo, por assim dizer quantitativamente, mais importante que o individual, o que significa, de algum modo, um ascendente da política sobre a ética. Todavia a natureza dos dois bens é ``idêntica'', não se colocando os problemas modernos do colectivismo ou do individualismo. Existe circularidade entre os bens do indivíduo e da pólis, até porque sem amigos, e, portanto, sem uma colectividade bem organizada, o indivíduo não pode aspirar à eudaimonía.
A ideia da independência do político em relação ao ético, do político como pura arte do equilíbrio dos poderes, da sua distribuição justa, e do exercício do poder, será sublinhada na Modernidade a partir de Maquiavel e Hobbes. Esta linha de pensamento conduzirá à posição de um Carl Schmitt, que vê a essência da axiologia do político na polaridade dos valores amigo/inimigo, a qual seria completamente independente das axiologias do bem e do mal (axiologia moral), do justo e do injusto (domínio do direito) e do belo e do feio (domínio do estético).
Houve no entanto vários autores, no século XX, que rejeitaram a tese da independência absoluta do político, defendida por Schmitt, e tentaram mediatizar o ético e o político. Está neste caso Max Weber, com a sua distinção entre ``ética de convicções'' (Gesinnungsethik) e ``ética da responsabilidade'' (Verantwortungsethik). A primeira é a ética do moralista que aplica cegamente princípios morais, recusando-se a fazer qualquer balanço das consequências da sua aplicação. é o caso, por exemplo, do pacifista convicto, que recusa o recurso à violência (e à guerra) em qualquer circunstância. A segunda é a ética do político ``responsável'', que aceita males limitados para evitar males ainda maiores. Neste caso o objectivo final da política é ético.
A distinção weberiana entre Gesinnungsethik e Verantwortungsethik é típica de uma época que, apesar de conferir à política um objectivo moral, ainda estava pronta a aceitar certas medidas de Realpolitik da parte dos governantes, sobretudo em matéria de política externa. As coisas mudaram bastante a seguir a 1945. De então para cá acentuou-se a tendência para um cada vez maior controlo ético do político. Podemos apontar três razões principais para explicar esta tendência.
A primeira é a maior importância dada, nas democracias ocidentais do Pós-Guerra, à noção de ``direitos fundamentais do homem'', que assenta, como já dissemos, em princípios de natureza intrinsecamente moral. E isto, segundo alguns juristas, em deterimento do conceito clássico de ``soberania'', que justificava uma grande autonomia do agir dos governantes em prol da chamada ``razão de estado''. Como reacção ao trauma dos ``estados totalitários'', as instituições políticas encarregadas da protecção dos ``direitos fundamentais'' do indivíduo, particularmente os tribunais constitucionais, inclusivamente em caso de conflito com o próprio estado, foram consideravelmente reforçadas ou criadas ex nihilo. é neste contexto que se observou uma progressiva eticização da política, que não podia deixar de ``alastrar'' à vida privada dos próprios políticos.
Uma segunda razão desta exigência de ética na vida política moderna está no facto de os governos estarem muito mais dependentes da opinião pública, do que acontecia até 1945. Numa época em que os cidadãos se habituaram a uma informação permanente por parte dos media, os governantes vêem-se obrigados, não só a tornar manifestos os seus actos políticos, mas também a explicá-los em permanência e a justificá-los moralmente. Nestas condições, é difícil declarar agir para fins, ou com recurso a meios, eticamente menos confessáveis. Isto para já não falar numa espécie de espiral eticista induzida pela dinâmica muito particular das relações entre os agentes dos media e a ``classe política''. (...)
Finalmente, uma terceira razão para uma maior exigência de ética relativamente aos governantes deve-se a desenvolvimentos surgidos no campo da técnica, que causaram, e causam, uma angústia compreensível nas opiniões ocidentais. A bomba atómica, a problemática da poluição do meio ambiente (susceptível de pôr em causa, a longo prazo, a sobrevivência da espécie) e, mais recentemente, a biotecnologia, são, talvez, os mais importantes desenvolvimentos no campo da técnica a pôr importantes problemas éticos. As pessoas consideram que se trata de tecnologias demasiado perigosas para serem deixadas aos técnicos da tecnociência moderna, por um lado, e à mercê das simples decisões de políticos, cujo poder, aliás, é cada vez mais diminuto devido aos determinismos do sub-sistema económico-monetário, por outro.
José Manuel Santos in bocc.ubi.pt