Filosofia e pedagogia

Não tenhamos ilusões, falta á nossa época a consciência da cultura, isto é, daquela coisa que em aparência mais a envaidece. A isso contribuiu a expansão democrática do ensino, que se preocupou mais de estender o uso do vocabulário do que intensificar e purificar numa minoria selecta a consciência das ideias. Devido a isto, multiplicaram os médicos, os engenheiros, os advogados, os técnicos, os leitores de jornais e em troca subtraiu os homens cultos. Causa última, sintoma definitivo desta mingua é que a nossa idade padece uma forma específica da incultura, precisamente o desconhecimento daquelas meditações em que se aclara o sentido da cultura e em consequência, o sentido da vida humana, é a incultura do médico sábio, do engenheiro sábio, do jurista sábio, a ignorância do geral que padece o sábio essencial. Do século X até aos nossos dias a época que se caracteriza pela sua incultura filosófica é o século XX, século do especialismo. Porque a consciência da cultura, não é, outra coisa a não ser filosofia.
Por isso, convém que falemos de vez em quando de filosofia, somente falar dela, porque apesar de ser a ciência mais subtil, é a que menos pode ser ensinada. A filosofia, não se ensina, a filosofia contamina-se. Perante a pedagogia mecanizada, eu afirmo como única, verdadeira e sem hipocrisias a pedagogia da contaminação. Não pretendo ensinar-vos nada de filosofia e terei feito tudo se conseguisse seduzir-vos relativamente a ela.
Como uma gota vai arrastada na turbulência do rio, cada um vai submergindo nesta coisa imensa, turva e violenta que é a vida. Não é oportuno que de vez em quando tratemos de levantar a cabeça sobre a corrente e vermos onde o rio nos leva? Aristóteles no início da sua ética diz belamente:” o arqueiro procura um alvo para as suas flechas? E não o procuraremos para a nossa vida?”
Espirito significa precisamente a serenidade no meio da agitação vital da multidão de desejos parciais, de amarguras, de exaltações que nos faz perder a consciência de uma direcção, de um sentido que orienta e qualifica toda essa turbulência.
A maior parte dos homens vive atenta apenas ao pequeno negócio ou à ânsia que tem à frente, se os deixássemos sós, a vida neles teria cada vez menos pulsações. O pequeno negócio seria cada vez mais pequeno, o campo visual mais angustioso e os corações maio apertados. Por isso a missão do intelectual e sobre tudo do filósofo, é proclamar fervorosamente, exasperadamente a obrigação do esforço espiritual que dilata as almas e potência a vida. Perante o homem utilitário tem que adoptar uma atitude absurda de desinteresse e viver como o fogo consumindo-se a si mesmo.
O filósofo tem que ter esta atitude e por isso, quando aparece um filósofo verdadeiro, a humanidade sente como um verdadeiro “espolazo” pela vida.
Não pretendo ser esse verdadeiro filósofo, nem sequer um filósofo aparente, só por força administrativa suporto o título de professor de metafísica, de uma coisa que não conheço bem e que mesmo bem conhecida não se pode, em rigor, ensinar. Eu convido-vos, pois, a coincidir comigo em não tomar a sério esta minha capacidade administrativa.
A minha pretensão é incomparavelmente mais modesta, contentar-me-ia em passar perto das almas mais quietas que a minha e deixar cair nelas fermentações de dúvida, ambição e esperança. Tereis notado que ao estarmos inclinados sobre um tanque ou perto de um lago de água morta e vemos a superfície tão imóvel, polida, indiferente, onde se reflectem as nuvens viajantes, as nuvens de Abril redondas e barrocas, se apodera de nós como uma irritação e um desejo de acabar com aquela calma e polimento fictícios que escondem toda a radiante vida do fundo lodoso. E sem darmos conta, a nossa mão apanha uma pequena pedra e a atira à água, cujo cristal se parte e vibra trémulo como umas costas vivas e deixa escapar bolhas que ascendem do fundo como suspiros. Feito isto, afastamo-nos ingenuamente satisfeitos. Pois algo não menos ingénuo me seria grato fazer com as almas demasiado quietas, as minhas aspirações esgotam-se, como vedes, em chegar a ser um professor de atirar pequenas pedras nos tanques.
Tradução de Ana Margarida Rua Filipe Martins no âmbito da cadeira “História e Filosofia da Educação” 
"Mision de la Universidad", Madrid: Alianza Editorial, 1882, pp.87-96
in http://www.educ.fc.ul.pt