Filosofia e Poesia - por Olavo de Carvalho

A filosofia é a busca da sabedoria, a poesia é a sabedoria em busca dos homens. Isto é tudo, e não há mais diferença alguma. São como as duas colunas do templo, o Rigor e a Misericórdia — aquilo que a sabedoria exige, aquilo que a sabedoria concede. Por esta razão não podem nem se desentender de todo, nem identificar-se por completo. Nem pode a filosofia deixar de ser uma poesia que se recolheu ao estado de experiência interior, nem pode a poesia deixar de ser uma filosofia in nuce.
Pela mesma razão a filosofia, ao contrário da poesia, não está nunca totalmente na obra, e sim metade no filósofo mesmo: o portador do saber é o homem, não o livro. O livro, o tratado, a aula, nunca é senão a condensação do saber nuns quantos princípios gerais e sua exemplificação numas quantas amostras; e o saber, o verdadeiro saber, se abriga naquele núcleo vivo de inteligência que permanece no fundo da alma do autor após encerrado o livro, e que saberá dar a esses princípios outras e ilimitadas encarnações e aplicações diversas, imprevisíveis, surpreendentes ou mesmo paradoxais, conforme a variedade inabarcável das situações da existência. Só em Sto. Tomás residiu a sabedoria de Sto. Tomás. Nós outros não podemos ser senão tomistas, o que é um Sto. Tomás fixado e diminuído, compactado por desidratação. Não nego totalmente, no entanto, a possibilidade de colocar em livro o essencial do que um homem sabe e vê. Apenas julgo que não se pode despejar inteiramente o conteúdo dessa visão pessoal em teses explícitas, porque as teses são apenas o resíduo cristalizado de uma decantação interior que, longe de constituir a mera preparação para o advento das teses, constitui antes o exercício mesmo da filosofia. Ora, esse exercício, que se dá no tempo e que tem por sujeito um indivíduo humano real -- ainda que possuindo por outro lado o alcance universal de um símbolo -- , não é representável senão sob forma artística. O filósofo, se pretende ser compreendido, deve portanto levar ao papel não somente o conteúdo explícito das teses a que chegou, guarnecidas ou não de demonstrações extensivas e exemplos, mas também algo da atmosfera interior em que nasceram e se desenvolveram; atmosfera esta que não pode se reconstituir senão por meio da narração, do drama e da poesia. Mas não se trata, por outro lado, de escrever romances, dramas ou poemas que traduzam alegoricamente nossas ideias — pois a arte literária, por si, não pode escapar a seu compromisso com a linguagem metafórica e declarar explicitamente as teses filosóficas a que adere, declaração que tornaria um adorno supérfluo a narrativa ou poema que a acompanha, rodeia ou antecede. Muito menos teria cabimento argumentar literariamente, substituindo à força das demonstrações o encanto das imagens, sugerindo em vez de afirmar, seduzindo em vez de provar. O livro filosófico, em suma, tem de possuir a um tempo, articuladas e distintas numa límpida harmonia, a nitidez e a demonstrabilidade da tese científica, a sugestividade envolvente da obra poética, sem cair nem no esquematismo impessoal da primeira, nem na névoa plurissensa da segunda. Espremida entre estas exigências contrárias, a redação de um livro de filosofia — pelo menos a quem esteja consciente delas — pode apresentar dificuldades temíveis, motivo pelo qual tenho preferido antes falar do que escrever, embora o exercício da escrita não me seja nem um pouco repelente. Sublinha ainda mais esta preferência o fato de que o professor entre seus alunos tem ali a atmosfera presente e viva, sem precisar imitá-la por artifício verbal.

Olavo da Carvalho in http://www.olavodecarvalho.org