Henry Thoreau - Democracia, cidadania e desobediência civil.

Aceito de bom grado a divisa: "O melhor governo é o que menos governa"; e gostaria de vê-la aplicada rápida e sistematicamente em todo o lado. No limite ela conduz-nos a esta outra na qual também acredito: "o melhor governo será mesmo aquele que não governar de todo" - e quando os homens estiverem preparados, será esse o tipo de governo que irão escolher.
Um Governo é, na melhor das hipóteses, um expediente de "conveniência". Porém muitos governos são habitualmente - e todos o serão alguma vez - inconvenientes. (...).
A existência do Estado demonstra quão prontamente os homens estão dispostos a sujeitar-se e a impor-se uns aos outros para seu próprio bem. Esta situação é excelente, temos de admitir. No entanto, esse mesmo Estado nunca por sua iniciativa fez avançar algum empreendimento, a não ser pela prontidão com que em alguns casos soube sair da frente para desobstruir o caminho. O Estado não mantém o país livre. (...).
Mas para falar de modo prático como cidadão, e não como certos que se auto intitulam “homens sem responsabilidades políticas”, eu não reclamo imediatamente “morte ao Estado”, mas sim “melhor Estado”. Que cada homem faça saber que tipo de governo mereceria o seu respeito, e esse será desde logo um primeiro passo para tal se conseguir.
Afinal, a razão prática pela qual quando alguma vez o poder cai nas mãos do povo, e o governo passa a reger-se pela regra da maioria, possivelmente até durante um período longo, não é porque esta maioria sejam especialmente dotada de razão ou inteligência mas porque simplesmente… é mais forte. Porém, um governo da maioria não é capaz de fundar-se sempre na Justiça, mesmo na justiça tal qual a percepcionam os homens.
Mas não será possível um Governo no qual não sejam as maiorias mas a consciência a discernir o certo do errado? Um Governo no qual as maiorias se limitem a decidir as questões para as quais valha o critério da conveniência e do expediente? Deve o cidadão nalgum momento abdicar da sua consciência em favor do legislador? Por que razão haveria então cada homem de ter sequer uma consciência? Eu penso que devemos ser Homens primeiro e só depois sujeitos ou súbditos. Não se deve cultivar o respeito pela Lei acima do respeito pelo Direito.
Com verdade se diz que uma empresa não possui consciência; mas uma empresa de cidadãos conscientes torna-se uma empresa com uma consciência. A lei nunca tornou os homens nem um pouco mais justos. E por via do seu respeito pela Lei, mesmo o mais conformado com ela se constitui todos os dias agente de injustiças. (...)
A multidão humana serve, pois, o Estado não como homens mas principalmente como máquinas, com os seus corpos. Eles constituem o exército regular, os corpos milicianos, os guardas prisionais, os posse comitatus – espécie de regedor ou junta local - etc. Na maioria dos casos não há um livre exercício do juízo ou até do sentido moral; mas eles colocam-se a si mesmos ao mesmo nível da madeira, da terra ou das pedras; e talvez até seja possível que homens feitos de madeira possam fazer o mesmo serviço. Não nos merecem, pois, mais respeito que um boneco de palha ou um monte de lixo. Têm o mesmo valor que cavalos ou cães. No entanto, gente desta é frequentemente considerada e estimada como bons cidadãos. Outros, tal como a maioria dos legisladores, políticos, advogados, ministros e altos-funcionários, servem o Estado principalmente com a cabeça. E como raramente fazem distinções de ordem moral, estes são igualmente propensos a servir Deus ou o diabo, supostamente sem intenção. Muito poucos: heróis, patriotas, mártires, reformadores no melhor sentido, e os Homens, servem o Estado também com as suas consciências, e por isso necessariamente lhe resistem tantas vezes – e são por ele normalmente tratados como seus inimigos. (...).
Aquele que se oferece inteiramente aos seus concidadãos parecer-lhes-á inútil e egoísta; mas aqueloutro que se lhes entrega parcialmente é declarado um benemérito e filantropo.
(...).
Qual o valor corrente de um homem honesto e patriota hoje? Eles hesitam, lamentam-se a por vezes até fazem abaixo-assinados, mas não fazem nada de sério e consequente. Esperarão, bem dispostos, que alguém faça alguma coisa que remedeie o mal para que não tenham de continuar a lamentá-lo. No máximo chegarão a dar o seu voto barato e uma leve reverência à Justiça, se lhes parecer. Há novecentos e noventa e nove “patronos da virtude” por cada homem realmente virtuoso; Mas é mais fácil tratar com o dono duma coisa do que com o seu guardião temporário.
(...) Na realidade, não é dever dum homem dedicar-se à erradicação de algum mal, mesmo do mais aberrante. Ele pode honradamente entregar-se a outras preocupações. Mas é seu dever, pelo menos, lavar dele as suas mãos e, se não quiser pensar mais nisso, deverá abster-se de lhe dar qualquer apoio prático. Se eu me dedico a outras buscas e contemplações, devo ao menos certificar-me de que não o faço pesando sobre os ombros dos outros homens. Devo primeiro retirar-me e deixar de lhes pesar, para que também eles se possam dedicar às suas contemplações. Veja-se que grosseira inconsistência se tolera. Ouvi dizer a alguns dos meus conterrâneos que “gostava que alguém se atrevesse a ordenar-me para ir esmagar uma revolta dos escravos ou a marchar para o México – iam ver se eu ia!” E no entanto todos e cada um destes mesmos homens, com a sua lealdade e, pelo menos indirectamente com o seu dinheiro dos impostos, forneceram um substituto. Aplaude-se o soldado que se recusa a servir numa guerra injusta – mas o que aplaude é o mesmo que não se recusa a sustentar o governo injusto que promove a dita guerra. O objector de consciência é aplaudido por aqueles cujos actos e autoridade ele desrespeita e ignora - como se o Estado levasse a sua penitência ao ponto de contratar alguém para o flagelar pelos seus pecados, mas já não ao ponto de deixar de pecar por um só momento. Assim, em nome da Ordem e do Governo Civil, somos todos finalmente levados a prestar homenagem e a apoiar a nossa própria malevolência. Passada a fase da vergonha pelas nossas faltas, passamos ao estádio de indiferença e de imorais, elas passam a amorais e, com o tempo, chegamos mesmo a vê-las como elementos já não propriamente desnecessários àquela vida que fomos construindo.

Henry Thoreau (1817 - 1862) - A Desobediência Civil


Para reflectir: 
«Malo periculosam libertatem quam quietum servitium» , Jean-Jacques Rousseau