Cidadania liberal e cidadania republicana- por Jürgen Habermas

Segundo a concepção liberal, o estatuto dos cidadãos define-se pelos direitos subjectivos de que dispõem diante do estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direitos subjectivos, os cidadãos contam com a protecção do estado desde que defendam os seus próprios interesses nos limites impostos pela lei — e isso refere-se igualmente à defesa contra intervenções estatais que excedam a ressalva intervencionista prevista na lei. Os direitos subjectivos são direitos negativos que garantem um âmbito de escolha dentro do qual os cidadãos estão livres de coacções externas. Os direitos políticos têm a mesma estrutura. Oferecem aos cidadãos a possibilidade de fazer valer os seus interesses particulares, ao permitir que possam ser agregados a outros interesses privados (por meio de eleições, da composição do parlamento e do governo) até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma efectiva influência sobre a administração. Dessa maneira, os cidadãos, como membros do estado, podem controlar em que medida o poder do estado se exerce no seu próprio interesse como pessoas privadas.
De acordo com a concepção republicana, o estatuto de cidadão não é definido pelo critério de liberdades negativas das quais só se pode fazer uso como pessoa privada. Os direitos de cidadania, direitos de participação e de comunicação política, são melhor entendidos como liberdades positivas. Não garantem a liberdade de coacções externas, mas a participação numa prática comum, cujo exercício permite aos cidadãos converterem-se no que querem ser — sujeitos políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Nessa medida, o processo político não serve somente para o controle da actividade do estado por cidadãos que, no exercício dos seus direitos privados e das suas liberdades pré-políticas, alcançaram uma autonomia já pré-existente. Também não cumpre uma função de articulação entre o estado e a sociedade, já que o poder estatal democrático não é sob hipótese alguma uma força originária. Esse poder provém na realidade do poder gerado comunicativamente na prática da autodeterminação dos cidadãos e legitima-se na medida em que protege essa prática por meio da institucionalização da liberdade pública. A justificação da existência do estado não se encontra primariamente na protecção de direitos subjectivos privados iguais, mas sim na garantia de um processo inclusivo de formação da opinião e da vontade, em que cidadãos livres e iguais se entendem sobre os fins e as normas que correspondam ao interesse comum de todos. Com isso, exige-se do cidadão republicano mais do que a orientação segundo os seus respectivos interesses privados.
Jürgen Habermas, Trad. e adaptação de Vítor João Oliveira, Inclusion of the other, Cambridge: Polity Press, 2002