O Maior Triunfo do Homem - Fernando Pessoa

O maior triunfo do homem é quando se convence de que o ridículo é uma coisa sua que existe só para os outros, e, mesmo, sempre que outros queiram. Ele então deixa de importar-se com o ridículo, que, como não está em si, ele não pode matar. 
Três coisas tem o homem superior que ensinar-se a esquecer para que possa gozar no perfeito silêncio a sua superioridade - o ridículo, o trabalho e a dedicação. 
Como não se dedica a ninguém, também nada exige da dedicação alheia. Sóbrio, casto, frugal, tocando o menos possível na vida, tanto para não se incomodar como para não aproximar as coisas de mais, a ponto de destruir nelas a capacidade de serem sonhadas, ele isola-se por conveniência do orgulho e da desilusão. Aprende a sentir tudo sem o sentir directamente; porque sentir directamente é submeter-se - submeter-se à acção da coisa sentida. 
Vive nas dores e nas alegrias alheias, Whitman olímpico, Proteu da compreensão, sem partilhar de vivê-las realmente. Pode, a seu talante, embarcar ou ficar nas partidas de navios e pode ficar e embarcar ao mesmo tempo, porque não embarca nem fica. Esteve com todos em todas as sensações de todas as horas da sua vida. Assistiu, olhando pelos olhos e pelos corações dos protagonistas, a todas as tragédias da terra. Com os que renunciaram renunciou. Caiu em todas as batalhas, ficando vencedor de elas. 
Venceu a sua alegria e a sua dor vencendo toda a alegria e toda a dor do mundo. 
Ele lembra-se da sua própria voz ter gritado, de entre o povo judeu que se aglomerara: «Nós queremos antes Barrabás». E no momento em que pensou como o tinha sido, o nome de Barrabás lembrava-lhe já que Barrabás era ele, e Cristo também, que o povo não pedira. Quando voltou a querer lembrar-se que homem do povo havia sido, viu que tinha sido todos eles. Se olhava ligeiramente para cima sentia em sonho na sua fronte de mulher os cabelos negros de Maria. Sentia seios. Como eles desviaram a idea para o instinto sexual, ele chorou de repente e sabia que era a Madalena. Estendia as mãos mas lembrou-se de quando Pilatos as lavara da responsabilidade, e o seu vulto aprumava-se, governador romano, na sonhada toga que lhe roçava de leve a sensação ideal da própria pele. 
Cerrava os olhos, os próprios olhos do sonho, com o cansaço múltiplo d'aquilo tudo, e num último reflexo, antes da apatia, os estandartes do fim d'aquilo tudo, passam, com águias no cimo, num crepúsculo com montes verdes ao fundo. 
O cansaço de tanta sensação dispersa trazia-lhe uma depressão; e a depressão trazia-lhe os sentimentos depressivos - e entre eles, no limite do cansaço, o da piedade mole e chorosa pelos outros - canto de ama, cantando à noite, quando o pobre que não tinha ninguém encontra Nossa Senhora na estrada vestida de pastora, que o leva pela mão para o céu. 
A infância lembrada abriu a porta a Cristo que entra pela sua sensação de todas as lágrimas a chorar. 
Fernando Pessoa, 'Inéditos'