O Sentido da Vida - António Lobo Antunes

Apetecia-lhe que alguém lhe falasse. Tivera uma mulher em tempos. Recordava-se dos suspiros dela, dos dedos magros a moverem as coisas. Uma tarde não a encontrou. Deixou um vestido no cabide, um vestido antigo, com pintinhas. Um cabelo no esmalte do lavatório. Um gancho na mesa"
Costumava ir ao cemitério visitar a minha mãe mas, por não ter a certeza de qual era a campa, dado não existirem lápides naquele talhão, apenas números na ponta de hastes de ferro, sentava-se por ali, numa saliência a jeito, e ficava a olhar a terra e as árvores ou um dos cachorros que, de quando em quando, passavam por ele, a murmurarem, seguindo um fio de cheiro lá deles. Ao longe oliveiras e, mais longe, depois de um murozito, uma ou outra ruína antes do mar. A mãe devia estar por perto, muito calada, sob um dos tufos de ervas ou, se calhar, era agora um tufo de ervas que às vezes suspirava com o auxílio do vento. Aos setenta anos tanto lhe fazia, mas sentia-se quase eterno a imaginar que a escutava. Trazia uma garrafa no bolso da gabardine, destinada a acompanhá-lo se por acaso uma névoa de desconforto lhe arrepiasse o estômago. Não chegava a beber porque as ervas não pronunciavam o seu nome. À esquerda oliveiras em lugar de choupos, um ou dois corvos junto às vacas numa encosta. As vacas não pastavam, quietas desde ele pequeno, desde há séculos, as mesmas da sua infância, de pestanas brancas, com os tendões do pescoço a baloiçarem. A mãe costumava dar-lhe café quando a visitava. Tinha o retrato de um homem de barba em cima de um caixote, amparado a uma boneca a que faltava um dos braços.
- O meu avô e a Matilde
dizia a mãe ao olhá-los
- O meu avô e a Matilde
isto enquanto aquecia o café, com o sol no freixo das traseiras e, nos intervalos da voz da mãe, um imenso silêncio no interior do qual, por vezes, latejava uma rã, nos charcos do outono, a inchar e a desinchar a garganta. Nunca havia de esquecer o cheiro da roupa da mãe e uma mala aberta, com talheres e panelas, a um canto. Ou a orla de espuma castanha no café preto. As ervas do cemitério não mencionavam o avô nem a Matilde, limitavam-se a sussurrar murmúrios sem nexo. Contou vinte e sete números em vinte e sete hastes de ferro, vinte e sete defuntos a acompanharem-no. Se não os contasse julgaria que mais de mil, porque a tábua do seu peito lhe parecia oprimida por uma multidão de criaturas.
- Quantos somos?
perguntava-se ele
- Quantos somos ao certo?
e a pergunta flutuava em torno até se dissolver devagarinho e esquecê-la. Em certas ocasiões vinha-lhe a recordação do pai, na sua cadeira de pranchas de barrica, com o tubo do cachimbo reforçado a adesivo. Não o pai de dia, o pai à noite, observando, pela porta aberta, as duas ou três luzinhas do escuro, que deviam pertencer aos candeeiros da estrada. Talvez às folhas das piteiras sob a lua. Talvez a almas vagabundas em busca de sossego. Perguntou, a tocar na garrafa
- Acha que são almas, mãe?
e a sua própria voz tranquilizou-o, ainda que se lhe afigurasse esquisito continuar vivo. Podia ter falecido quando caiu do tractor. Podia ter falecido com a febre de há dois anos. Se tivesse falecido era à beira da sua campa que estaria agora. Quer dizer, à beira de um número, dele ou de outro. Uma das vacas avançou três passos. A mãe, ao entregar-lhe o café
- Bebe enquanto está quente
e em que sítio parariam agora o retrato do avô e a Matilde? Não herdara as feições do avô, não herdara as feições do pai. A mãe espantava-se
- A quem sais tu?
a verificar-lhe o nariz, a boca, o queixo. Apetecia-lhe que alguém lhe falasse. Tivera uma mulher em tempos. Recordava-se dos suspiros dela, dos dedos magros a moverem as coisas. Uma tarde não a encontrou. Deixou um vestido no cabide, um vestido antigo, com pintinhas. Um cabelo no esmalte do lavatório. Um gancho na mesa. Um dos cachorros do cemitério parou a fixá-lo. Fixou-o de volta com a certeza de não ter pele, de ser, ele mesmo, o cemitério inteiro, as oliveiras, o mar. Uma guinadazita de vento transportou-o para norte, roçando na terra, nas pedras. Uma guinadazita de vento articulou
- Mãe
uma espécie de paz vestiu-o inteiro, uma espécie de paz sem relação com a mãe, sem relação com nada e, no interior da paz, um hálito ténue que cantava. Não compreendia a cantiga mas sabia que vinha de regiões confusas, de uma casa que conhecia e perdera e na qual nunca entrara. Ficava na rua a espreitar uma varanda sem ninguém, um tremor lento de cortinas. Talvez lhe acenassem das cortinas, não estava certo. Devagarinho a cantiga foi-se tornando mais forte até tomar conta dele, erguendo-o como uma semente sem peso. Ainda deu pelo cachorro, agora minúsculo, lá em baixo, ainda deu pelos números do cemitério, ainda deu pela mãe
- O meu avô e a Matilde
e o braço que faltava à Matilde entristeceu-o. Isto é, não bem tristeza, uma coisa parda que se desvanecia e, ao desvanecer-se, ainda deu pelo indicador e o polegar da enfermeira do hospital que lhe fechavam as pálpebras. O freixo das traseiras continuava cheio de sol.
António Lobo Antunes in Revista Visão