O sentido da vida - Kurt Baier

Há muitas coisas que um homem pode fazer, tais como comprar e vender, contratar trabalhadores, lavrar a terra, derrubar árvores, etc., que serão tolas, sem sentido, tontas e talvez loucas se não tivermos qualquer propósito em vista ao fazê-las. Um homem que faz estas coisas sem qualquer propósito estará a entregar-se a tarefas inanes e fúteis. Vidas preenchidas com tais actividades sem propósito serão destituídas de razão de ser, fúteis e sem valor. Tais vidas podem realmente ser consideradas sem sentido.
Em contraste, ter ou não ter um propósito, na outra acepção, é algo neutro quanto ao valor. Não prezamos mais ou menos uma coisa por ter ou não um propósito. "Ter um propósito", neste sentido, não confere qualquer prestígio, e "não ter um propósito" não acarreta qualquer estigma. Uma fila de árvores perto de uma quinta pode ter ou não um propósito: pode servir ou não para cortar o vento, as árvores podem ter sido ou não plantadas naquele local ou ali deixadas propositadamente para evitar que os ventos assolem os campos. De modo algum depreciamos as árvores se dissermos que não têm qualquer propósito, tendo-se limitado a crescer assim. São tão belas, feitas de madeira tão boa e são tão valiosas como se tivessem um propósito. E, claro, cortam o vento igualmente bem. O mesmo acontece com criaturas vivas. Não depreciamos um cão quando dizemos que não tem qualquer propósito, não é um cão pastor nem um cão polícia nem um cão para caçar coelhos, mas apenas um cão que anda pela casa e que nós alimentamos.
Contudo, o homem pertence a uma categoria completamente diferente. Atribuir a um ser humano um propósito nesta acepção não é neutro, nem sequer lisonjeiro: é ofensivo. É degradante para um homem ser encarado meramente como algo que serve um propósito. Se, numa festa, eu perguntar a um empregado "Qual é o seu propósito?", estarei a insultá-lo. Poderia igualmente ter-lhe perguntado "Para que serve você?". Tais questões reduzem-no ao nível de uma geringonça, um animal doméstico, ou talvez um escravo. Estou a sugerir que nós lhe atribuímos as tarefas, os objectivos, os fins que ele deve procurar alcançar; que as suas aspirações e desejos e propósitos pouco ou nada contam. Estamos a tratá-lo, na expressão de Kant, meramente como um meio para os nossos fins, e não como um fim em si.
A mundividência cristã difere realmente da científica a este respeito, a um nível fundamental. A última despoja o homem de um propósito neste sentido. Vê o homem como um ser sem qualquer propósito que lhe tenha sido atribuído por seja quem for excepto ele mesmo. Despoja o homem de qualquer objectivo, propósito ou destino que lhe tenha sido atribuído por qualquer força exterior. A mundividência cristã, por outro lado, encara o homem como uma criatura, um artefacto divino, algo a meio caminho entre um robot (manufacturado) e um animal (vivo), um homúnculo, ou talvez um Frankenstein, feito no laboratório divino, com um propósito, ou tarefa, que lhe foi atribuído pelo seu Criador.
Contudo, a falta de propósito, nesta acepção, não impede de modo algum que a vida tenha sentido. Suspeito que muitas das pessoas que rejeitam a mundividência científica por esta implica que a vida perca um propósito, e portanto sentido, estão a confundir as duas acepções de "propósito" acima. Pensam confusamente que se a mundividência científica for verdadeira, então as suas vidas têm de ser fúteis porque essa mundividência implica que o homem não tem qualquer propósito que lhe tenha sido dado a partir do exterior. Mas isto é uma confusão, pois, como mostrei, a ausência de sentido só decorre da falta de propósito na outra acepção, que a mundividência científica não implica de maneira alguma. Estas pessoas concluem erradamente que não pode haver qualquer propósito na vida porque não há propósito para a vida; que os homens não podem adoptar e alcançar por si propósitos porque o homem, ao contrário de um robô ou de um cão de guarda, não é uma criatura com um propósito.
Kurt Baier, Trad. Desidério Murcho, "The Meaning of Life"