A actividade reflexiva

Muito bem. Já disse que a filosofia tem por função, entre outras coisas, reflectir sobre o reflectir. Através do filosofar, podemos saber mais sobre a nossa capacidade reflexiva. Por quê? Porque, em assim o fazendo podemos exercer o poder de reflexão mais amplamente, mais efectivamente e com mais precisão. Mas por que é tão importante exercer a capacidade reflexiva? A resposta é simples, mas essencial. Sem reflectir, não poderíamos ser livres. Agir sem reflectir significa não ser dono das próprias acções, ou ser movido por causas outras que não a nossa própria razão. Essa é a diferença entre nós e os robôs. Eles não possuem poder de reflexão e por isso mesmo eles não podem escolher por si mesmos o curso de acção que irão adoptar. Do mesmo modo, quando adoptamos um certo curso de acção ‘sem reflectir’, mecanicamente, a gente se assemelha a um autómato, ou a um robô nas mãos do primeiro que passa.
É neste momento que fica claro o porquê do filosofar. A ponte entre a filosofia e as outras áreas não é imediata. Mas ela existe. Quando digo que sem reflectir seríamos apenas autómatos, eu quero dizer que a actividade reflexiva é condição de possibilidade das decisões livres. Se assim é, então filosofia tem a ver com liberdade. Explico melhor: se a actividade reflexiva leva-nos a ser livres, e se a filosofia permite-nos usar essa capacidade reflexiva com cada vez mais profundidade, então a filosofia pode ser vista como uma ferramenta essencial para a nossa liberdade, levando-nos a pensar mais claramente e, em consequência disso, a usar a capacidade de escolha em sua plenitude. O exercício da filosofia é a expressão mais profunda e plena da nossa liberdade. É a liberdade do pensar, do reflectir, que nos leva a agir livremente. O exercício da liberdade pressupõe que reflictamos sobre as nossas vidas, as nossas acções, as pessoas que nos rodeiam, o país em que vivemos, as regras da comunidade a qual pertencemos, e as informações (verdadeiros ou falsas) que obtemos, etc.
Esse é um resultado fundamental. Se surgir então a pergunta sobre o porquê de se estudar filosofia, independente dos interesses intelectuais de cada um, essa é uma resposta possível. Além disso, a relação entre filosofia e liberdade permite que a gente responda àqueles que dizem que o filósofo em nada contribui para o desenvolvimento da humanidade ou para a mudança (para melhor) da realidade. Se procurarmos mudar a realidade sem liberdade, na verdade estaremos mudando algo não segundo a nossa vontade, mas segundo a vontade dos outros.
Uma outra lição que se pode tirar da relação entre filosofia e liberdade é que ela nos ajuda a compreender o porquê da insatisfação constante do filósofo, aquela que Hume sente e que o leva a passear ao longo do rio e a jogar gamão com os seus amigos. A insatisfação origina-se do fato de que a actividade filosófica, assim como a actividade teórica em geral, não parece ter um ponto final. Mas isso é exactamente o que a torna tão essencial à liberdade. O trabalho filosófico em particular e o teórico em geral não têm fim. Conceber um fim à actividade reflexiva é, de um certo modo, conceber o fim do exercício da liberdade. A gente só pára de reflectir sobre os princípios que actuam como premissas de argumentos quando a gente se rende à superstição, à religião ou ao totalitarismo.
Finalmente, pode-se dizer que a actividade reflexiva é auto-referente. Isso quer dizer que, mesmo para combatê-la, a gente tem que adoptá-la. Esse é o erro de Sexto Empírico e de outros cépticos que suspeitavam da actividade especulativa. Eles só podem combater a especulação de modo persuasivo se eles adoptarem um procedimento especulativo. Eles só podem condenar uma teoria adoptando outra. O que resta então é adoptar uma teoria que resista a ataques, e que explique pelo menos alguns dos problemas que nos afligem. Mas como descobrir essa teoria, que não é mágica, como queriam os dogmáticos, mas que inevitavelmente se encontra na actividade intelectual, como negavam os cépticos? No caso da filosofia, a gente tem que filosofar mesmo para negar a filosofia, como uma vez disse Aristóteles. A gente tem que ser filósofo mesmo se a gente desejar jogar fora a filosofia.
Marco Antonio Franciotti