Do Estado Novo - crónica satírica - António Lobo Antunes

Quando o Estado Novo, para desgraça nossa, terminou, substituído por gente ateia e sem moral que se pôs logo a dar independência aos pretos e liberdades às mulheres, pernas ao léu, divórcios, uma vergonha. Os ateus sem moral roubaram-lhe o emprego, enxovalharam-no ( - Houve quem tentasse bater-me, imagine) o senhorio pô-lo na rua ( - A minha esposa faleceu desse desgosto
Era informador da polícia política
(-Nunca deixei de cumprir o meu dever de português)
agora passa as tardes diante de um bagacito, sozinho numa mesa encostada à parede. Tem oitenta e sete anos, o cabelo penteado com esmero, o nó da gravata, cheia de lustro, perfeito.
(-Há duas coisas que não perco, o patriotismo e o orgulho)
cuida-se conforme pode mas percebe-se que pode pouco, o bagaço dura a tarde inteira, o que comerá ao jantar
(- Com as democracias a darem cabo do mundo o que se espera?)
no buraco onde dorme
(- Um quarto digno)
com um postigozito além do qual traseiras e hortaliças.
Trabalhava nas finanças outrora, no tempo do Senhor Doutor Salazar
(vénia breve)
atento aos desrespeitosos e aos traidores
(lábio inferior a crescer de indignação)
que se atreviam a piadinhas
(- Começa-se na piada e acaba-se na bomba)
acerca do Governo da Nação
(- Até insinuações contra a masculinidade do Presidente do Conselho, palavra de honra)
factos que ele enviava imediatamente por escrito, datados e assinados
(- Não conheço o medo, meu amigo)
para a sede da polícia
(- Assim por baixo mais de mil e quinhentos relatórios)
e, embora não o fizesse por dinheiro
(- Que fique claro: o amor a Portugal não se paga em moedas)
(- Às vezes, nuns apertozitos)
aceitava um subsídio nominal, que arredondava o fim do mês e lhe permitia ajudar a mãe nos remédios
(- Não nasci em berço de ouro e dou graças a Deus por isso)
visto que a idade traz sempre doenças consigo, no que se refere à mãe o açúcar e a vesícula
(- Foram sempre os pontos fracos da minha família, o açúcar e a vesícula)
cujo tratamento, no seu caso, constava do bagacito e uma sopinha ao jantar, tomada lentamente a fim de sentir, durante mais tempo, uns fiapos de couve na boca. Oitenta e sete anos, o mesmo casaco, as mesmas calças, o rebordo do colarinho preto do uso, a língua que desobedecia aqui e ali, empastelando os pontos de vista, embora continuasse lúcido e alerta
(- A memória não falha)
apesar das perseguições e injustiças que lhe caíram em cima
(- Literalmente)
quando o Estado Novo, para desgraça nossa, terminou, substituído por gente ateia e sem moral que se pôs logo a dar independência aos pretos e liberdades às mulheres, pernas ao léu, divórcios, uma vergonha. Os ateus sem moral roubaram-lhe o emprego, enxovalharam-no
(- Houve quem tentasse bater-me, imagine)
o senhorio pô-lo na rua
(- A minha esposa faleceu desse desgosto)
a esposa faleceu
(- Literalmente)
desse desgosto
(- Esteve a soro no hospital quinze dias já vê)
permaneceu que tempos a olhar-me calado, posto que estar a soro no hospital é um facto que impressiona qualquer pessoa
(- Não o arrepia, a si?)
deu uma mirada ao bagaço, por um triz não bebia um golinho, impedindo o cálice de durar três horas, apagou emoções do canto do olho com o indicador
(- Desculpe mas isto mexe comigo)
lá se recompôs a custo, lutando com as tremuras dos ombros, e a vida dele, daí para a frente, um cortejo de calamidades e misérias de toda a ordem, suportados com a dignidade de um Homem
(- Sou da cepa dos que andaram nas caravelas)
sem emprego, sem mulher, sem dinheiro, sem polícia política com quem desabafar, sem amigos até, que por cobardia o abandonavam juntando-se aos ateus sem moral
- (Não tem sido fácil não curvar a espinha)
que não se cansam de apodrecer a juventude, geração após geração, transformando-nos numa récua
(- Estou a medir os termos quando afirmo que récua, estou a ser indulgente)
de homossexuais, drogados e gatunos. Soslaio desconfiado para mim
(- Você não é homossexual, por acaso?)
seguido de regresso à contemplação do copinho
(- Por fora não dá ares mas eles disfarçam-se bem)
e fica na dúvida, a vigiar-me os modos até que, de repente, as mãos lhe tremem
(- Tenho medo) os olhos principiam a descer das órbitas
(- Tenho tanto medo) uma veia do pescoço, enorme, principia a latir, uma criança assoma no fundo de oitenta e sete anos, indefesa, intacta, tão sozinha
(- Não me deixe morrer)
e eu, indeciso, pego-lhe ao colo, não lhe pego ao colo, eu, indeciso, piro-me, não me piro, eu, indeciso
- E agora?
De modo que acabo por poisar-lhe a palma na manga
- Sossegue que não o deixo morrer
com a sensação esquisita, idiota, inexplicável, de ignorar qual dos dois sou eu.
António Lobo Antunes in visao.sapo.pt