Ilusionismo político

Vivemos dias de intenso ilusionismo político em que tudo o que se diz é, afinal, para afirmar outra coisa. E em que tudo o que se faz é, na verdade, para atingir objetivos que não são ditos. Este ilusionismo alimenta-se de uma constante teatralização da vida política, que tem contudo como o seu mais evidente reverso a sua quase completa descredibilização.
Todos sabemos que isto não é novo, que a "representação" de algum modo liga, desde os tempos mais remotos, a política e o teatro. Mas o que é novo é que a teatralização se tornou um processo de inextrincável e cúmplice porosidade entre as esferas política e mediática, que tudo procura transformar em "acontecimentos", em eventos coproduzidos como se - à imagem dos reality shows - se tratasse de verdadeiros info shows.
O recente programa da RTP Portugal Pergunta, com Pedro Passos Coelho, foi um bom exemplo disto mesmo, mas o encenado comentariado que inunda as tevês, a maior parte dos debates que por aí se fazem, a produção/lançamento de livros em que se fala de tudo menos deles próprios, tudo isto aí está a mostrar bem que tudo serve como pretexto para este pobre, mas intenso, teatro.
O nervo deste ilusionismo encontra-se, nos dias de hoje, na personalização e no voluntarismo que atravessam o espaço político, nomeadamente na afirmação de um eu sem quaisquer limites que se imagina e encena como se fosse capaz de afrontar a história e de enfrentar o mundo.
Para ele, não há projeto nacional, nem ideologia, nem visão prospetiva, nem valores. Pelo contrário, tudo se reduz - como os media gostam - a personalidades mais ou menos mitómanas, que se prestam a esta novíssima metamorfose da política, que vive todavia momentos cada vez mais difíceis, presa como está no labirinto de tudo prometer quando, afinal, nada sabe, ou pode, fazer.
O que esta metamorfose nos revela de mais fundamental é, todavia, o crepúsculo da política ao estilo dos anos 70 do século passado, da política da promessa que se mostra incapaz - enquanto estrebucha na armadilha da dívida em que se enredou - de se adaptar aos novos tempos, um passo que exige a difícil mutação do universo fantasista e de demagogia em que se vive, num universo mais pedagógico e realista.
O que o protagonismo voluntarista faz - e os exemplos são legião - é substituir o conhecimento do mundo, a inteligência das suas transformações e a sensibilidade aos seus problemas, num mero exercício narcísico da sua vontade, enquadrada nas mais diversas piruetas da comunicação.
De uma vontade sem mediações e que se identifica totalmente com o poder, o que a torna frequentemente brutal. Que imagina que a conquista da confiança decorre não do exercício da responsabilidade mas da exibição da mistificação e da lata. Tudo isto faz atualmente do voluntarismo o maior inimigo de qualquer política séria, que pretenda servir o bem comum e o futuro.
"Tudo mudou", diz-se constantemente, mas na verdade há algo que não mudou mesmo nada nestes anos de crise, por mais aguda e desesperante que ela se tenha tornado. E o que não mudou foi o crescente poder do "financismo" sobre os Estados e as sociedades. O que não mudou foi o também crescente domínio do mediatismo sobre os cidadãos, as suas modalidades de expressão, as suas capacidades e as suas expectativas.
Mas há algo mais que também não mudou, bem pelo contrário: foi a crescente impotência da política, que, com o seu narcisismo prometeico e mitómano, se tornou no bode expiatório ideal de todos os males das sociedades contemporâneas.
É por aqui que é preciso começar a mudar. Mudar, com a política a assumir claramente as suas responsabilidades, mas também a revelar com coragem e sentido pedagógico as dos outros: da indústria financeira, dos lobbies, dos media, das elites deslumbradas etc.
Mudar, cortando com a demagogia das promessas e fazendo a pedagogia do mundo, dos seus reais problemas e das suas possibilidades efetivas. Mudar, acabando com as lengalengas da globalização e a competitividade da Europa e da dívida, que já ninguém ouve e apenas dão força a todo o tipo de demagogia que alastra pela União Europeia.
Mudar, compreendendo que a raiz dos nossos impasses, aquilo que verdadeiramente nos impede de resolver os nossos problemas, está na verdade numa construção europeia que se apoia cada vez mais em procedimentos oligárquicos, subalternizando cada vez mais a democracia a uma obscura teia de normas económicas e jurídicas. Para se pôr fim ao ilusionismo político, que nos manieta individual e sobretudo coletivamente, temos de deixar de estar reféns da multifacetada impotência fabricada que, identificando o pós-nacional com o pós-político, na verdade esvazia os aparelhos políticos nacionais de toda a potência e de toda a substância.
É de resto por isto que a chamada crise da democracia é muito mais grave e aguda na União Europeia do que nos EUA. As instituições europeias - seja o Parlamento Europeu, a Comissão, o Tribunal de Justiça ou o BCE - foram completamente ultrapassadas pelos acontecimentos e pela história.
Como Marcel Gauchet afirmou recentemente, a construção europeia, em vez de diminuir, "amplifica os problemas já visíveis no interior das democracias. Ela tira à decisão política o pouco de efetividade que ela ainda podia esperar conservar no interior dos espaços nacionais. Ela é animada por uma vontade pós-política, a de reduzir a democracia ao mais amplo exercício político das liberdades individuais. Claro que estas são sempre um importante componente da democracia, mas esta consiste essencialmente, antes de tudo o mais, na capacidade de fazer escolhas coletivas. Mas para isso é preciso um quadro em que elas possam ser efetuadas por pessoas conscientes do significado dessas escolhas. Ora, a Europa não é, não tem esse quadro." É isto, nem mais, nem menos.
Manuel Maria Carrilho in dn.pt