Discurso da intervenção de José Pacheco Pereira na Aula Magna (21 de Novembro de 2013)

Sei do "perigo" que o uso do ensino em favor da politiquice tem e nego-me a prestar tal "serviço". Aqui, ao contrário, uso a Política em prol do ensino. E gostava que fosse exclusivamente essa a leitura a fazer, embora reconheça o risco de alguma mente mais "maquiavélica" insistir em ver nesta escolha sinais de conspirações e contra-poder - quero estar longe desses transtornos delirantes persistentes, mais ou menos maníacos e obsessivos.
Serve o trecho que elegi para ilustrar de forma academicamente exemplar, viva e actual, a técnica do discurso argumentativo - já é raro haver quem pense e exponha de forma cuidada e precisa as suas ideias; digo isto independentemente da simpatia maior ou nenhuma que elas nos possam merecer.
É no contexto da vida pública que a argumentação atinge a sua máxima força e pertinência e é nesse âmbito que gostava que este discurso fosse estudado. Tomei a liberdade de cortar a parte inicial que, embora de interesse, me parece pesada por razões que agora não vou arguir.
Boa leitura e análise.
Francisco Lopes

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Amigos, companheiros e camaradas,
Como membro de uma minoria em extinção, pelo menos no topo do meu partido, o PSD, a dos social-democratas, não se espere de mim nem uma palavra de justificação por aqui estar. Bem pelo contrário, farei a muitos a pergunta de por que razão não estão aqui de corpo, já que de espírito muitos estarão. Não os represento, não represento ninguém a não ser a mim próprio e mesmo assim de forma bastante imperfeita, mas os tempos não estão para inércias nem para confortos, nem para encontrar pretextos do passado, ou diferenças no futuro, para não se lutar, não pelas mesmas coisas, mas contra as mesmas coisas. Em momentos de profunda crise, tem que ser assim, sempre foi assim, e esse é o sentido mais profundo deste tipo de iniciativas de Mário Soares. O incómodo que geram, no poder e na oposição, vem disso mesmo.
Nós somos de facto muito diferentes entre nós, somos aquilo que no mundo anglo-saxónico se chamaria “strange bedfellows”, estranhos companheiros de cama. Não se assustem as almas pudibundas, porque a expressão vem de Shakespeare e refere-se ao manto em comum que protege os marinheiros da tempestade, “misery / acquaints a man with strange bedfellows.”
Na verdade, estranha assembleia esta que junta quem quer rasgar o memorando e colocar delicadamente a troika na rua, quem a quer colocar na rua menos delicadamente, com quem aprovou o chamado Pacto Orçamental, com quem pensa que o memorando, filho da necessidade extrema, podia ser aplicado de modo muito diferente, sem o rastro de incompetências e mistelas ideológicas deixado nestes dois anos. 
É ambígua essa “unidade”? É sem dúvida, mas seria muito mais perigoso não ter qualquer forma de entendimento quando o mal que se está a fazer ao país, a Portugal, a tempestade que nos assola, é tão grave que considerações de conveniência só servem o Deus dos trovões e da chuva que nos quer afundar o navio. Sim, até porque muitos marinheiros já estão na água, como aqueles a quem se chama eufemisticamente “desempregados de longa duração”, ou seja, aqueles portugueses cuja vida está estragada até ao fim dos seus dias. 
E nem sequer estou certo que o que nos une seja o lema deste encontro: “Em defesa da Constituição, da democracia e do estado social". Não me entusiasma como lema, ninguém se mobiliza por uma lei, mas por aquilo para que essa lei serve, ou aquilo que essa lei defende: democracia, confiança, soberania, contrato social. Ninguém se mobiliza pelo “estado social” que é muitas vezes uma abstracção ideológica. Mobiliza-se por que todos possam ter uma vida decente, saúde, educação, segurança, – muita gente esquece-se que existe também um direito à segurança, – e para que ninguém possa ser excluído desses bens básicos porque não tem dinheiro. E se alguns podem, devem apoiar os que não podem, não como caridade ou assistência, mas como forma natural de viver em sociedade. Tão simples como isso. Vem no Programa do PSD escrito por Sá Carneiro, vem na doutrina social da igreja. 
Mas, acima de tudo, custa-me a ideia de que o papel dos que aqui estão seja apenas “defender” como se estivessem condenados a travar uma luta de trincheiras. Não, os que aqui estão não estão a defender coisa nenhuma, mas a atacar a iniquidade, a injustiça, o desprezo, o cinismo dos poderosos para quem a vida decente de milhões de pessoas é irrelevante, não conta, é um “custo” que se deve “poupar”. A transformação da palavra “austeridade” numa injunção moral serve para um Primeiro-ministro, apanhado pelo sucesso dos celtas, sorrir cinicamente para nos dizer que a “lição” da Irlanda é a ainda precisamos de mais austeridade, ainda precisamos de mais desemprego, ainda precisamos de mais pobreza. E sorri muito contente consigo mesmo.
O discurso de contínua mentira e falsidade que nos diz como se fosse uma evidência, que “as empresas ajustaram, as famílias ajustaram, só o estado não o fez”, como se as três entidades fossem a mesma coisa e o verbo “ajustarem” significasse o retorno a um estado natural das coisas de que só o vício de quererem viver melhor afastou os portugueses. Na verdade, pode-se dizer que “as empresas ajustaram”. Sim algumas “ajustaram”, mas a maioria “ajustou” falindo e destruindo o emprego, - que para quem não tem outra “propriedade” é o seu modo de vida. As famílias não “ajustaram”, empobreceram e estão a empobrecer muito, para ter que ouvir como insulto os méritos de perderem a casa ou o carro, ou a educação superior para os seus filhos, e o valor moral de deixar de comer bife e passarem a comer frango.
No entanto, há uma coisa em que estou de acordo, de facto o estado não “ajustou”, continua religiosamente pagar os desmandos dos contratos leoninos das PPPs, a negociar com vantagem para o sistema financeiro, os contratos swap, em vez de receber a lição do sucesso judicial de empresários que recorreram aos tribunais, a baixar uns impostos para algumas empresas ao mesmo tempo que continua a permitir que um contínuo entre um establishment no poder ligado ao sector financeiro capture as decisões políticas, tornando intangíveis os seus interesses na razão directa em que viola todos os contratos com os homens e mulheres comuns, destruindo toda a confiança que numa sociedade democrática é a garantia do contrato social.
Amigos, companheiros e camaradas,
Nos comícios da oposição antes do 25 de Abril cantava-se muito o hino nacional. No grande comício de Norton de Matos no Porto, em 1949, deve-se ter cantado pelo menos meia dúzia de vezes, nem que seja pelo prazer de gritar o “às armas”, que mais do que um grito “às armas”, - estejam sossegados não é isso que quero dizer, - era um grito pela resistência da nação face aos seus inimigos. Não sei se os organizadores desta sessão previram esse acto, mas deviam ter pensado nisso porque é de Portugal que se trata e o hino não é só para usar no futebol. 
Quem sente Portugal como uma comunidade, dos pescadores do Algarve, da Nazaré, das Caxinas, dos pequenos empresários de Leiria ou de Viseu, dos operários têxteis do Ave, dos professores de todo o país, dos agricultores dos Açores, do Minho ou do Ribatejo, dos comerciantes do Porto e de Lisboa, dos universitários de Aveiro ou de Braga, dos funcionários públicos que permitem o funcionamento de escolas, tribunais, municípios e hospitais, dos trabalhadores da indústria metalomecânica, da cortiça, dos moldes, dos transportes, dos agentes das forças de segurança e militares, dos reformados e pensionistas, percebe a enorme destruição desta crise, que atinge avós, pais e netos, todas as gerações, que atinge quem tem muito pouco e quem ainda tem alguma coisa, mas que não atinge quem tem muita coisa. Esta é que é a nossa comunidade, um Portugal cuja mera enunciação viola a afrontosa redução de tudo e todos à ambígua designação de “empreendedores” de um lado e “piegas” gastadores do outro. Ou que torna inaceitável o obsceno uso da palavra soberania ou do protectorado para desresponsabilizar o governo e os seus apoiantes de políticas que abraçaram com todos os braços, e que agora, quando correm mal, fazem de conta que não é com eles. 
O que nos une aqui é um outro dilema, a ”questão que temos connosco mesmos” do poema de Alexandre O’Neil 
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo, 
golpe até ao osso, 
fome sem entretém, 
perdigueiro marrado e sem narizes, 
sem perdizes,
rocim engraxado, 
feira cabisbaixa, 
meu remorso, 
meu remorso de todos nós . . . 
É para não termos esse remorso que estamos aqui, não à defesa, mas ao ataque. Ao ataque por todos os meios constitucionais.
Por aquilo a que chamávamos no passado “a nossa pátria amada”.»
José Pacheco Pereira na Aula Magna -21 - 11 - 2013 in abrupto.blogspot.pt