Economia e felicidade

Guardei da minha infância uma caneta de tinta permanente, com o meu nome gravado, oferecida quando completei os primeiros quatro anos de escola. Lembro-me de a usar com um cuidado redobrado, possuída do receio de que alguma gota da tinta azul me caísse na folha branca ou no tecido da bata. Nessa imprevidência, a mancha alastrava impetuosa por cada fibra do papel ou do tecido, e derramava-se, impossível de conter, qual ação sem dono.
É esta a imagem que me ocupa quando penso na presente colonização da nossa existência pela economia. Como um borrão incontrolável, toca hoje todas as fibras e esferas da nossa quotidianidade. A cada passo a sua premência nos recorda de quão longe estamos das previsões de Habermas, que há poucos anos nos dizia acreditar que a utopia emigraria do mundo do trabalho para o resto da nossa vida, em formato de compromisso cívico e solidário, e de melhoria das instituições democráticas – movimentos essenciais para a esperança num futuro comum.
Destoando desta perspetiva, com o capitalismo livre emigrou também o descrédito e o ceticismo nos outros e no futuro, outra mácula que alastra sem contenção, deixando-nos crucificados num presente endurecido. A ele não são alheios o antagonismo competitivo e o darwinismo social, que tantas vezes nos estimulam a comportamentos sociais menos éticos, e empurram uns contra os outros – agora, porque em tempo de escassez; antes, porque em tempo de abundância - e nos deixam um desencantamento progressivo face à mera possibilidade de politicas educativas, sociais e económicas bondosas, vidas relacionais de elevada ordem moral, e práticas diárias efetivas de virtude.
Como professora e mãe, como cidadã e investigadora, não posso suportar a ideia de penhorarmos o futuro e nos despedirmos de toda a utopia – sem essas âncoras, nada do que sou ou do que faço me faz sentido.
Tem sido por isso com ânimo vitalizado que acompanho um pequeno mas altamente qualificado grupo de economistas europeus, sobretudo italianos, mas também suíços e ingleses, que buscam uma outra forma de pensar e viver a economia, e nas suas universidades investigam e divulgam o valor psicológico e social dos bens não tangíveis. Dedicam-se em especial aos bens da esfera social, conscientes da realidade empírica que indicia que os bens económicos convencionais excessivos, e a atual perceção de progresso, nos afastaram de uma vida de que nos orgulhemos.
Mostram as investigações que os bens económicos convencionais (mas atenção! Só depois das necessidades básicas estarem cumpridas, como o direito ao sustento, a uma casa condigna, à saúde, educação, emprego) parecem pouco associados ao bem-estar das pessoas e sociedades, e o seu incremento, quando já vivemos uma vida digna, parece não aumentar a nossa felicidade. Em contraponto, os relacionais, se genuínos e positivamente recíprocos, mostram-se profundamente relevantes para a felicidade subjetiva, em sociedades em que a justiça, a igualdade e a bondade mapeiam as existências e as politicas. Estudar a felicidade pela mão dos psicólogos tem sido sobretudo pensá-la enquanto bem individual, muito enquanto um bem hedónico e de prazer, e menos enquanto um bem social, de outro tipo de desenvolvimento e crescimento, e de construção do sentido para a vida. Esse ângulo desponta agora na economia, e dá força a quem, na psicologia, já defendia há anos um olhar mais amplo, relacional, organizacional, comunitário, do que é sermos felizes.
Foi por isso que na semana que passou, a 3 e 4 de Junho estive em Roma, rodeada desses mesmos economistas, no sexto congresso internacional da associação HEIRS: Happiness Economics and Interpersonal Relations Studies (Estudos da Economia da Felicidade e Relações Interpessoais), este ano sob o tema da Felicidade Pública. No meio de complexas equações matemáticas, muitos estudos empíricos abstratos, bem como debates sobre virtudes (estes últimos mais a jeito do meu entendimento), o apelo quase generalizado destes intelectuais foi destinado ao pensamento integrado e ao Bem Comum através da emergência de um contexto social que promova o melhor de todos e cada um, e as virtudes coletivas.
Polifónicas perspetivas do que pode ser uma boa sociedade, de qual o seu papel na promoção do bem-estar pessoal e coletivo, e do que em consequência poderão ser as políticas públicas, entreteciam-se insidiosamente no meio da estatística dura, e das fraturas de pensamento e abordagem, ou (como ali foram chamadas) das tensões criativas entre psicólogos, sociólogos e economistas.
Num momento em que é cada vez mais perigoso e arrojado usar publicamente palavras como felicidade, positivo ou amor – assumidas e criticadas como sendo parte de uma cultura de negação ou de superficialidade, de insensata euforia perpétua ou de associação com o dever ou imposição de viver hedonicamente feliz – louvo a referida associação de economistas pela dedicação corajosa ao tema.
A felicidade, a banalidade e a vacuidade não têm que andar de mãos dadas. Apetece voltar ao Cândido de Voltaire, escrito após o Terramoto de Lisboa, que ao demolir a visão filosófica corrente nessa segunda metade do seculo XVIII, que até à nossa catástrofe nacional considerava que vivíamos no melhor dos mundos possíveis, passa pelos maiores dramas possíveis, em busca de um sentido. Hoje, muitos Cândidos nos fazem acreditar que vivemos no pior dos mundos desejáveis, e que estudar e promover a felicidade é uma prática desrespeitadora dos dramas humanos. Muitos dizem por isso que a felicidade não é suficiente como meta, em particular em períodos de austeridade e perdas materiais e direitos conseguidos, como os que vivemos. Concordamos. Não é suficiente, se entendida na visão individual, prazerosa, superficial e momentânea, e se não for aplicada para resolver os problemas do mundo.
Mas o estudo e a promoção da felicidade podem e devem ser guiados por alvos sociais profundos, enriquecidos e enriquecedores, e ter implicações políticas, educativas, de saúde e económicas que nos ajudem a voltar a confiar. Não se pretende que a felicidade seja uma hegemonia, muito menos uma ideologia, mas tão só que seja um suporte para construir novos sentidos – desde a importância de cuidar dos laços sociais, até aos passos promotores de autonomia e escolha, de poder e controlo sobre as próprias condições da existência, do crescimento individual e social, e de uma conscientização coletiva. Esta foi a posição da investigadora norte-americana Carol Ryff na sua intervenção na conferência.
Não podemos por isso ouvir os alardes críticos, eles mesmos superficiais e desconhecedores, e deitar fora palavras, narrativas, áreas de investigação e sonhos de futuro, apenas porque as sombras são mais fortes e poderosas que a luz. É cada vez mais inadiável estudar e perceber os efeitos das instituições nas dores e prazeres atuais, como defendia o economista Bruno Frey na referida conferência, onde expôs que o mais importante para as políticas sociais é trazer para a agenda as relações entre as pessoas e a forma como a comparação entre elas as move, repensando a democracia, a educação e o emprego dentro desta moldura.
Stefano Zamagni terminou o encontro de dois dias com uma lista de cinco tópicos que considera precisarem de ser mais investigados no futuro, mas começou com uma pergunta: “Faz sentido falar de felicidade num momento de crise?” A esta respondeu que historicamente sempre fez sentido: as mais marcantes e ricas perspetivas sobre a felicidade, oriundas de economistas ou filósofos, emergiram em tempos críticos das sociedades ocidentais. Foi assim com Thomas Hobbes e a sua teoria da felicidade como segurança, com John Locke e a sua visão da felicidade como liberdade, com John Stuart Mill, que trouxe a perspetiva da felicidade como sociabilidade, e de Antonio Genovesi – o grande autor por detrás destas conferências – que promoveu o entendimento da felicidade como pública, e em relação.
Quanto aos temas a promover na agenda da investigação, Zamagni propôs:
1. Estudar e aprofundar a relação entre Felicidade e Justiça, em particular compreender fundamentadamente o impacto das desigualdades e do desemprego na felicidade, para esclarecer alguns paradoxos, e assegurar que, perante o efeito da desigualdade na felicidade das pessoas, se deve atender ao conceito de justiça benevolente (não mais como dois opostos, mas como duas linhas complementares).
2. Estudar a felicidade no contexto das organizações e do mundo laboral, com particular relevo para a investigação, não como até aqui da ligação da felicidade com o consumo, mas agora com a produtividade. Defendeu a este propósito que as empresas (a par das famílias, das escolas…) são locais de criação do carácter humano, e que é hoje neste contexto laboral que se encontram maiores razões de infelicidade. Ainda se posicionou na defesa do estudo, não já do Capital Humano, mas do Capital Conectivo, daquilo que nos liga e nos permite cooperar – porque a cooperação é um fator de felicidade.
3. Investigar a ligação da felicidade com o género. A preocupação aqui desponta de dados recentes que mostram que as mulheres – e não os homens – estão a ficar mais infelizes. Como travar esta tendência e as suas consequências para o resto da vida em sociedade? Como organizar as nossas vidas coletivas sem ser “à maneira masculina”?
4. Estudar mais a causalidade, na relação com a felicidade. Os paradoxos e contradições na área da economia e do bem-estar advêm da proeminência de estudos correlacionais e não de estudos causais. Considerou que é mais arriscado para o investigador estudar as causas do que meras correlações, já que naquele caso se tomam posições mas referiu que é tempo de arriscar.
5. Finalmente, propôs que se estudasse mais a ligação da felicidade com a bondade e o bom. Já reparou o leitor que falamos habitualmente de bens materiais? O que é um bem? O que é uma vida boa? Como é uma sociedade boa? Como se liga a modernidade com a moralidade? A resposta poderá vir de estudos que ajudem a perceber como a felicidade está ligada ao exercício das virtudes. 
Assumiu que só poderemos falar de felicidade pública se entendermos a noção de bem.
Olhando para o enfoque destes economistas, reflito que talvez o grande escândalo desta mancha económica que molda toda a nossa vida tenha sido não termos sabido usar a riqueza económica que até aqui conseguíramos, para a repartir com equilíbrio e justiça, para que mais, muito mais pessoas, todas as pessoas, tivessem direito à felicidade digna.
Voltando ao Cândido, que tendo sido endoutrinado para ser optimista, albergou em si todas as possíveis catástrofes do mundo, o que o levou à inevitabilidade de ponderar sobre o problema do mal. É fascinante que Voltaire lhe tenha decidido dar estabilidade de vida numa pacata comunidade rural. No entanto, essa pacatez trouxe ao herói da história um aborrecimento penoso, e acabou por fazer emergir nele a estranha e contraditória saudade das dolorosas aventuras do passado. No fundo, ali tudo é mau: o presente sereno e protegido, e o passado dramático, mas aventureiro e estimulante. Onde encontra Cândido a solução? Na ação, através de um trabalho comunitário repleto de significado, em que todos colaboram e contribuem para o bem comum – cultivando o jardim coletivo. Muitos peritos na obra atribuem a este final uma visão pessimista da perda de esperança; preferimos outros, que defendem nesse final uma posição melhorista sobre a sociedade: um convite a estarmos comprometidos com um jardinar metafórico, que ativamente cuidamos juntos.
Olho o vidro antigo do tinteiro, recipiente a cujas paredes se acomoda o fluido com que a minha caneta permanente se alimenta, e penso que temos a escolha de poder sempre mudar de tinta: de infelicidade sustentada para felicidade sustentável, da imunidade ao outro de quem nos afastamos porque nos traz dor, para o retorno à comunidade e à aceitação da dialética permanente entre bênção e ferida. Esta foi a posição de Luigino Bruni, um dos economistas por detrás da organização da conferência – estar com o outro, fazer comunidade, é aceitar esta dialética – porque é nela que está a extração do futuro que vamos juntos escrever.
Que a mancha ténue que agora cresce serpenteante nos nossos tecidos sociais e científicos eleve os estudos da felicidade a instrumento de consciência pública e de construção coletiva – porque a felicidade não é (apenas), não pode ser, uma acumulação utilitarista e privada do máximo de experiências egoístas de prazer, qual corrupção hedónica debruada com os mais ricos brilhos económicos e as mais interesseiras metas financeiras, mas sim uma mancha que derrame, deliberada, o nobre, incorruptível e desapegado sentido do publico e do civil.
Helena Marujo in publico.pt