Valores Ético-Políticos - por Guilherme d’Oliveira Martins

“ Charles Péguy dizia que tudo começa em mística e acaba em política. Desde sempre que a actividade política vive condicionada por esta verificação. No começo, estão os ideais, os princípios, a generosidade das causas, mas o confronto com a realidade suscita a necessidade de conciliar, de encontrar compromissos, de lidar com a complexidade dos fenómenos sociais. Sempre assim aconteceu. Por isso, os cidadãos estão colocados sempre perante o dilema que contrapõe a formulação abstracta dos valores ético-políticos e a aplicação prática e impura dos mesmos. Daí as desilusões, a predominância do curto prazo e do imediato e o esquecimento da mística e dos ideais. E, nos dias de hoje, a força dos meios de comunicação de massa, só reforça esta transigência com o imediato e com a ilusão. Res non verba, coisas e não palavras, diziam os clássicos, para sinalizar à vida política a necessidade de cuidar da resolução dos problemas, em lugar do primado das respostas vagas e das promessas.
Jorge de Sena, num ensaio luminoso sobre Maquiavel, recorda-nos, a propósito da contradição entre pensamento e acção, que «nenhum pensamento e nenhuma acção existem, ou são possíveis, sem a resistência das estruturas sociais ou materiais, cuja oposição os gera, e que, gerando-os, é por eles conhecida como outra, uma vez que o pensamento e a acção, actuando, transformaram a natureza daquela resistência, criaram uma outra realidade». A vida política resulta dessa contradição que gera uma «outra realidade», para além da primeira relação entre os valores e o pensamento. Afinal, para Sena, Maquiavel encontra a monstruosidade do Príncipe ao reduzir, paradoxalmente, o homem à suavirtù, procurando a sua dignidade responsável- e retirando-lhe a desculpa de «atribuir-se o direito de ser monstruoso à escala divina». É na dignidade responsável, humaníssima, que tudo se põe. Não estamos na escala divina. Estamos na esfera limitada e imperfeita da acção humana - de uma acção que erra, que hesita, que avança por tentativas e pelo efeito da dúvida. O mal não é um critério, mas um resultado. E daí a necessidade de procurar superá-lo e de encontrar uma via de acção, capaz de conciliar pensamento e prática, mística e política. O mal de Maquiavel não é, pois, a justificação, mas a ausência dela. E assim a acção política deixa de conter a fatalidade do mal, para passar a conter uma tensão permanente entre a procura da justiça e a possibilidade da sua negação. “

Guilherme d’Oliveira Martins in almenara.blogs.sapo.pt