Definir o conhecimento científico para Kant

Para Kant, falar de ciência é falar de um determinado conjunto de conhecimentos que se exprimem em enunciados a que dá o nome de juízos sintéticos apriori.
Um conhecimento científico é expresso num juízo, constitui uma síntese ou unidade e não deriva da experiência.
Para melhor se entender o que é um juízo científico, Kant distingue-o dos juízos analítico e sintético a posteriori.
Todos os juízos consistem na relação entre um sujeito e um predicado, podendo este ser afirmado ou negado do sujeito. A relação, como veremos imediatamente, assume várias formas e tem fundamentos diversos.
2. l. O juízo analítico
Que relação existe entre o sujeito e o predicado? O predicado está contido no sujeito e portanto basta analisar o sujeito para explicitar ou revelar o predicado. É um juízo explicativo, pois o predicado somente explica aquilo em que o sujeito consiste, revela a sua essência.
E um juízo de identidade ou uma tautologia, pois no predicado repete-se por outras palavras o que o sujeito é, o conceito do sujeito. Por isso mesmo não é um juízo cognitivo ou extensivo. É um juízo fundado no princípio de não contradição porque na análise do sujeito o predicado ou predicados obtidos só têm validade se não contradisserem, se não entrarem em contradição com o sujeito, melhor dizendo, com o conceito que constitui o sujeito do juízo.
É um juízo universal e necessário porque aquilo que se diz do sujeito vale para todos os tempos e lugares e não pode deixar de ser assim.
Exemplo: "O triângulo é um polígono de três ângulos."
Por simples análise do sujeito obtém-se o predicado: dizer "triângulo" e "polígono de três ângulos" é o mesmo (tautologia, repetição). O predicado nada acrescenta ao sujeito, unicamente explicita o que neste já está implícito.
Esta explicitação nada de novo nos faz conhecer, não aumenta o nosso conhecimento: não produz um juízo cognitivo.
O predicado assim obtido não contradiz o conceito do sujeito, pois o que ele enuncia é precisamente aquilo em que o sujeito consiste. Posso atribuir P a S porque P não contradiz S.
Por isso mesmo este juízo vale universalmente e é necessário. É por ser necessário que tem validade universal. Um triângulo tem de ser, não pode não ser um polígono de três ângulos. Ninguém pode pôr em causa o que este juízo enuncia.
2.2. Juízo sintético a posteriori
Coloca-nos numa situação contrária à do juízo analítico. Como o próprio termo o indica, não é apriori (independente da experiência, i. e., universal e necessário).
Sendo sintético, a atribuição do predicado ao sujeito não é resultado de uma inspecção ou análise lógica do sujeito. Aqui o predicado é algo que se acrescenta ao sujeito, não se deduz deste porque não está contido no seu conceito. O predicado acrescenta-se ao sujeito, não se tira deste.
Exemplo: "Todos os habitantes desta casa são velhos."
É um juízo sintético, pois não podemos obter o predicado "velhos" por simples análise lógica do conceito do sujeito "habitantes desta casa". A ligação entre "velhos" e "todos os habitantes desta casa" é o resultado de várias observações num certo espaço e num certo tempo. A atribuição do predicado ao sujeito tem o seu fundamento na experiência. O predicado "velhos" não pode surgir da consideração pura e simples do conceito "habitantes desta casa". Por palavras simples, eu preciso de os ver para dizer o que são.
O juízo sintético a posteriori não é um juízo propriamente científico, embora aumente o nosso conhecimento, pois nele o predicado acrescenta algo ao sujeito, é uma novidade e não uma repetição. É um juízo cognitivo mas não é um juízo que exprima um conhecimento científico. Porquê? Porque, segundo Kant, a ciência consiste em juízos cuja universalidade ou necessidade é estrita, isto é, não admite excepções: é assim e sempre foi e será assim. Se é verdade que neste momento todos os habitantes da casa são velhos, é possível (muito provável) que no futuro surjam habitantes jovens e que no passado elementos jovens a tenham habitado. Assim não há uma ligação necessária entre os dois objectos da minha experiência. Não é possível dizer que os habitantes desta casa sempre foram e sempre serão velhos. Os juízos sintéticos a posteriori são contingentes (não necessários), pois se é contraditório que o triângulo tenha mais de três ângulos (é assim e não pode ser de outro modo) não é contraditório ou impossível que a casa venha a ter habitantes jovens. Se agora isso não acontece não faz sentido dizer que há impossibilidade lógica ou real desse acontecimento.
Os juízos sintéticos a posteriori, uma vez que não são independentes da experiência, não são nem necessários nem universais em sentido estrito. São juízos de facto, dependentes da observação, só válidos para quem observa e valendo somente para o momento ou o tempo da observação.
2.3. Juízo sintético apriori
Se não existissem juízos deste tipo não poderíamos falar de conhecimento científico.
Os analíticos são tautológicos, não cognitivos, pois, apesar de universais e necessários (a priori), não fazem mais do que explicitar o já dado no conceito do sujeito e dele não nos fazem sair.
Os juízos sintéticos a posteriori fazem-nos sair do conceito pois acrescentam-lhe algo que ele não contém por si, mas, embora aumentem o nosso conhecimento, não nos fornecem senão um conhecimento factual, empírico, contingente, em suma, não científico.
Os juízos sintéticos a priori não serão juízos analíticos porque aumentarão o nosso conhecimento nem juízos a posteriori porque serão absolutamente universais e necessários, i. e., de validade independente da experiência.
Exemplo de Kant: "Todo o acontecimento tem uma causa."
O juízo é sintético pois o predicado (tem uma causa) não está contido no conceito de acontecimento. O predicado só estaria contido no sujeito se em vez de acontecimento falássemos de efeito: "Todo o efeito tem uma causa."
No juízo "Todo o acontecimento tem uma causa" eu atribuo o predicado ao sujeito mas para isso não recorro, em termos de validade e de fundamentação, à experiência, à observação. A experiência já o sabemos é limitada, limita-se ao aqui e agora, não pode dizer: "todos os acontecimentos" porque não temos a possibilidade de intuição empírica de todos os fenómenos, passados, actuais e futuros. Além disso, dizer que "tudo o que acontece tem uma causa" é afirmar que todos os acontecimentos passados, presentes e futuros tiveram, têm e terão uma causa. Este juízo necessário não pode, como é óbvio, derivar da experiência: não é, portanto, um juízo sintético a posterior mas sim sintético a priori.
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