Ciência e hipótese: o problema do método científico

A primeira tentativa de descrição pormenorizada do método científico foi apresentada por Aristóteles. O método da ciência seria indutivo - demonstrativo. A aquisição de conhecimentos far­-se-ia por indução, processo no qual se estabelece uma conexão ascendente dos conhecimentos ­um progresso da observação dos particulares aos seus princípios explicativos; a demonstração apresentaria a conexão descendente dos conhecimentos – um encadeamento dedutivo dos princípios explicativos mais universais para os particulares. Os problemas que vamos abordar são ainda os que Aristóteles levantou – ou foram levantados na sua esteira.
1.1. O MÉTODO INDUTIVO – CRÍTICAS
A descrição feita pelo indutivismo ingénuo do método científico pode ser assim apresentada:
1.º Momento: A observação.
Começamos por observar e registar os factos de um modo objectivo. "Observação objectiva" significa: observar com o espírito liberto de preconceitos, de interpretações ou ideias preconcebidas. Um bom registo observacional é registo do facto tal como ele é, é um registo do facto em bruto.
2.º Momento: A generalização.
Das observações passamos gradualmente à generalização, isto é, a regras ou leis que explicam ou dão conexão aos factos observados. A gradual idade desta passagem é assegurada pelas repetições de observações. À força de a conexão se repetir, ela impõe-se ao nosso espírito, tornando-se conhecida.
Nesta descrição, o sujeito é passivo: o sujeito chega à verdade acolhendo os factos,deixando a regra manifestar-se através das repetições. Chegamos à verdade, porque ela chega a nós; a verdade revela-se. É importante verificar que nesta forma de indutivismo as hipóteses não têm qualquer papel de relevo.
O indutivista ingénuo sabe, claro, que uma grande actividade pode ser necessária tanto no dia-a-dia como no seu laboratório, para encontrarem certas verdades. Mas essa actividade seria exterior ao discurso científico: tal actividade visaria apenas pôr-nos nas condições em que a verdade se revela.
CRÍTICAS AO INDUTIVISMO INGÉNUO
1 - As observações mais produtivas fazem-se no quadro de teorias científicas ou projectos de investigação sem os quais as observações seriam totalmente cegas: da infinidade dos aspectos do mundo quais seriam os relevantes e os irrelevantes? Quais são os que constituem problema?
2 - As teorias mais produtivas requerem uma grande dose de imaginação que, aliada ao cálculo e ao raciocínio, ultrapassa, com frequência, tudo o que já foi observado. De que ob­servações directas teriam extraído os antigos a verdade "a Terra é redonda"? E de que ob­servações directas se extrairia uma relação matemática entre fenómenos?
O INDUTIVISMO REFLECTIDO OU SOFISTICADO
Objecções semelhantes às que apontámos ao indutivismo ingénuo levaram ao seguinte racio­cínio: dado que a verdade dos enunciados explicativos não é dada directamente, então eles devem primeiro ser sugeridos pelos factos, o sujeito tem,mediante certos processos, por exemplo, analó­gicos, de supor, conjecturar uma explicação e depois deve voltar aos factos para a verificar.
A grande diferença entre o indutivismo sofisticado e o indutivismo ingénuo reside no facto de este último assumir a necessidade e importância das hipóteses. De facto, é inegável que, em qual­quer momento do seu desenvolvimento, a ciência inclui hipóteses, muitas delas ainda com débeis níveis de confirmação.
1. OBSERVAÇÃO
Ainda que as observações fortuitas, ocasionais, desencadeiem, por vezes, importantes desco­bertas científicas, a observação científica deve ser rigorosa,metódica e orientada para a resolução de problemas. A objectividade das observações deve ser garantida pelo uso de instrumentos e me­didas rigorosas. Deverão, sempre que possível, ser quantificadas.
2. HIPÓTESE
Classificam-se, comparam-se e reorganizam-se os dados registados em ordem à detecção de relações constantes (leis) entre esses factos. O objectivo é estender, a título de hipótese, tais generalizações a todos os factos do tipo dos observados.
VERIFICAÇÃO
Dado que o âmbito da lei ou generalização ultrapassa sempre o dos dados da observação, ela tem que ser submetida a testes – entendidos como processos de certificação e verificação. As hipóteses raramente são testadas directamente, pela simples razão lógica de que elas são leis universais e a experiência incide sobre particulares. A passagem aos testes faz-se mediante a previsão ou predição de consequências dedutivas da hipótese em circunstâncias que deverão ser depois objecto de novas observações ou de montagens experimentais. O sucesso das predições num número razoável de experiências atesta a verdade (pelo menos, provisória) da hipótese – que, nesse caso, passa a designar-se simplesmente de lei.
Claude Bernard, médico e fisiólogo francês, é conhecido não só pelas suas importantes experiências em biologia, como pela reflexão sobre o método experimental. Ele mesmo deu o seguinte exemplo de descoberta que enquadrou no método experimental:
Observação: Constatou que os coelhos trazidos do mercado têm a urina clara e ácida, característica dos animais carnívoros.
Hipótese: Como sabia que os coelhos têm a urina turva e alcalina, por serem herbívoros, supôs que aqueles coelhos não se alimentavam há muito tempo e se transformaram, pela abstinência, em verdadeiros carnívoros, vivendo do seu próprio sangue, e que o mesmo se passaria com outros animais.
Verificação: Fez variar o regime alimentar dos coelhos, dando a alguns alimentação herbívora e a outros carnívora; repetiu a experiência com um cavalo. No fim, estava certificada a lei: "Em jejum todos os animais se alimentam de carne."
1. É erróneo supor que começamos pelas observações.
O indutivista também reconhece que as observações mais eficazes se fazem no quadro de teorias e de técnicas de observação que, claro, envolvem já conhecimentos muito complexos, mas supõe que, em última análise, na base desses conhecimentos está a observação. O argumento, que parece convincente, é de que, se o nosso conhecimento é relativo a factos, então ele não pode começar por teorias – tem de começar por um primeiro contacto com os factos.
a) razões lógicas:
Popper ensaiou a seguinte redução ao absurdo da origem observacional do conhecimento:
«O facto de a observação não poder preceder todos os problemas pode ser ilustrada por uma simples experiência que eu gostaria de levar a cabo, com a vossa permissão, tendo-vos como sujeitos experimentais. A minha experiência consiste em pedir-vos que observem aqui e agora. Espero que estejam todos a cooperar e a observar! No entanto receio que, pelo menos, alguns de vocês, em vez de observarem, sintam forte urgência em perguntar: "O que quer que eu observe?"
[…] Em ordem à observação, nós devemos ter em mente uma questão definida que pode­mos ser capazes de decidir pela observação. Darwin sabia isto quando escreveu: "Como pode suceder que ninguém veja que toda a observação deve ser ou por ou contra algum ponto de vista... "» Popper
Sem teorias prévia, a observação carece de qualquer orientação. As conjecturas (teorias ou ex­pectativas) são logicamente anteriores às observações.
Retomando o exemplo dado por Claude Bernard, Popper diria que a observação só foi cientifi­camente produtiva, porque o facto observado entrou em conflito com as expectativas do observa­dor, criando um problema.
b) razões biológicas:
Para Popper o conhecimento consiste na capacidade para resolver problemas e na solução efectiva dos mesmos. Ora, este é um processo inerente a todos os seres vivos;conhecimento não se refere apenas a representações, é um facto biológico. De acordo com esta ideia, sustenta que to­dos os seres vivos nascem com diferentes teorias,entendidas como conjunto de expectativas sobre o comportamento da realidade e meios de selecção de estímulos e processamento dos mesmos. O conhecimento humano acrescenta a este facto vital a linguagem que lhe dá uma maior plastici­dade: se quase todos os animais são capazes, pela pressão dos erros detectados, de modificar e aperfeiçoar as suas teorias ou disposições inatas, o homem é capaz de o fazer em maior grau.
Diz Popper:
Da amiba a Einstein, o crescimento do conhecimento é sempre o mesmo:tentamos resol­ver os problemas e obter, por um processo de eliminação, algo aproximadamente adequado às nossas soluções-tentativa.
2. As hipóteses não são, em nenhum sentido, extraídas dos factos.
A crítica feita ao indutivismo ingénuo é aqui retomada. Os factos só podem sugerir teorias a um sujeito capaz de mobilizar os seus conhecimentos (teorias e capacidades)para construir a con­jectura que soluciona o problema suscitado pelo confronto entre os factos e as suas teorias .
. As hipóteses são produto da cooperação do raciocínio e da imaginação. Têm de ser criadas, inventadas. Neste aspecto o trabalho do cientista é semelhante ao da criação artística. Com uma diferença: o cientista é tão livre para criar hipóteses como o artista, mas, ao contrário deste último, tem de submeter as suas criações a testes críticos.
3. As hipóteses não são verificáveis.
Popper retoma o argumento céptico contra a impossibilidade de demonstração completa de qualquer proposição. A exigência de uma demonstração absoluta conduz ao retrocesso infinito ou à petição de princípio.
Argumenta ainda que as leis ou hipóteses científicas exprimem-se ou tendem a exprimir-se na forma de enunciados universais, enunciados que referem um número indefinido ou mesmo infi­nito de casos particulares possíveis. Assim, de um ponto de vista lógico, todos esses casos deve­riam estar confirmados para a lei ou hipótese poder ser dada como verificada - e isso é manifes­tamente impossível.
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