Morte e existência

«E é que a experiência da morte não só deixa qualquer um pensativo, como o torna pensador. Por um lado, a consciência da morte faz-nos amadurecer pessoalmente: todas as crianças se julgam imortais (...). Mas depois crescemos quando a ideia da morte cresce dentro de nós. Por outro lado, a certeza pessoal da morte humaniza-nos, isto é, transforma-nos em verdadeiros humanos, em «mortais». Entre os gregos «humanos» e «mortal» dizia-se com a mesma palavra, como deveria ser. (...) nem as plantas nem os animais estão (...) vivos no mesmo sentido que nós estamos. Os verdadeiros viventes são só os mortais, porque sabemos que deixaremos de viver e que é exactamente nisso que a vida consiste. Alguns dizem que os deuses imortais existem e outros que não existem, mas ninguém diz que estão vivos: só a Cristo chamamos «Deus vivo» e isso porque se diz que encarnou, se fez homem, viveu como nós e como nós teve de morrer.(…)
É exactamente a certeza da morte que faz a vida – a minha vida,única e irrepetível – algo tão importante para mim. Todas as tarefas e empenhos da nossa vida são formas de resistência diante da morte que sabemos inevitável. É a consciência da morte que torna a vida um assunto muito sério que deve ser pensado. Algo misterioso e terrível, uma espécie de milagre extraordinário pelo qual devemos lutar, a favor do qual temos que lutar e reflectir. (...)
De maneira que a morte não é apenas necessária como se torna o próprio protótipo do necessário na nossa vida. (...) Ora bem, para além de achá-la necessária até ao ponto de exemplificar a própria necessidade («necessário» é etimologicamente o que não desiste, que não cede, com o qual não é possível transacção nem qualquer pacto), que outras coisas sabemos acerca da morte? Muito poucas coisas por certo. Uma delas é que é absolutamente pessoal e intransmissível: ninguém pode morrer por outro, quer dizer, torna-se impossível que alguém com a sua própria morte possa evitar definitivamente a outra pessoa o transe de morrer também mais tarde ou mais cedo. (...).
Sabemos da morte ainda outra coisa: que não é só certa mas perpetuamente iminente. Morrer não é coisa de velhos ou de doentes: desde o primeiro momento em que começamos a viver, logo ficamos prontos a morrer. (...)
Fatalmente necessária, perpetuamente iminente, intimamente intransmissível, solitária... o que sabemos da morte é muito verdadeiro (...), mas não no-la torna familiar nem menos incompreensível. No fundo, a morte continua a ser uma desconhecida.
Sabemos quando alguém está morto mas ignoramos o que é morrer visto por dentro. Penso saber mais ou menos o que é morrer, mas não o que é eu morrer. (...). O dado mais evidente sobre a morte é que quando se trata da morte dos outros costuma provocar dor, mas causa sobretudo medo quando pensamos na nossa morte. Algumas pessoas receiam que depois da morte haja algo terrível, castigos ou qualquer ameaça desconhecida. Outros temem que não haja nada, e esse nada torna-se ainda mais aterrador. (...).
Quer seja temida ou desejada, a morte em si mesma é pura negação, reverso da vida que por isso, de um modo ou de outro, nos remete sempre à própria vida, como um negativo de uma fotografia está sempre a pedir ser positivado para que o vejamos melhor. É assim que a morte serve para nos fazer pensar, não sobre a morte mas sobre a vida. Como numa parede impenetrável, o pensamento despertado pela morte ressalta contra a própria morte e regressa para se lançar várias vezes sobre a vida. Para lá de fechar os olhos para a não ver ou deixar-nos cegar estremecedoramente pela morte, é-nos oferecida a alternativa mortal de tentar compreender a vida.»
F. Savater, As Perguntas da Vida, Lisboa, Publicações D. Quixote, pp. 31-43