Tecnociência

A sociedade mudou mais em 200 anos, graças à tecnociência, do que nos últimos 10 mil anos. O ser humano também está a mudar?
Sempre esteve em mudança. Todas as épocas tiveram mudanças culturais, éticas e de valores. O problema é que agora há uma aceleração. A mais importante está a acontecer no plano biológico, com a genética e a possibilidade de controlar certas coisas ainda no embrião. E pode haver também uma redefinição da vida e da morte. No limite, podemos conservar pessoas em estados de semivida, ou de semimorte, o que coloca problemas de ordem moral e religiosa.
Esses problemas já se colocam.
Vão colocar-se cada vez mais, até ao momento em que não seja possível sequer ter uma resposta. Aí terá que haver uma escolha, uma ruptura, nos planos jurídico, político e científico. Essa é, desde logo, uma questão científica.
(...) Estamos cada vez mais dependentes da ciência, mas ela também está muito mais dependente de considerações militares, políticas e morais do que antes. Os financiamentos da ciência vão sempre para os mesmos sítios, os grandes laboratórios científicos, e há um empobrecimento de todas as pequenas iniciativas científicas e de todas as pequenas empresas económicas.
(...) Não estou persuadido de que vivamos num mundo global. Temos redes que nos permitem a comunicação entre diferentes pontos do globo, mas isso não é globalização. O que permanece mais universal é a guerra, e neste momento há inúmeros exemplos disso. O século XX, à medida que a técnica se de-senvolveu, foi abominável nesse aspecto. Infelizmente, isso ainda não terminou. É necessário que o humanismo se repense, para uma representação do homem positiva e fiel aos valores da universalidade. O homem pode eliminar-se a si próprio e sobre isso sou mais pessimista do que optimista. (...) Há interesses económicos e outros que relevam desta espécie de loucura geral da humanidade, que faz com que o indivíduo suporte cada vez pior o seu semelhante. Um problema fundamental é que o desenvolvimento tecnológico, desde o primeiro sílex, esteve sempre ligado a considerações militares.
(...) Não digo que seja uma fatalidade teológica, mas há uma espécie de destino da humanidade que passou sempre pela destruição do outro. Não quero generalizar, seria demasiado simplista, mas esta relação entre a técnica e o militarismo é muito forte, até no financiamento. A guerra é também uma actividade económica rentável.
O século XX foi terrível, mas (...) emergiu também uma nova consciência dos valores do humanismo, com o reconhecimento dos direitos humanos(...). (...) As utopias positivas, baseadas em valores humanistas, são do século XIX, quando se acreditava que era a industrialização que ia dar a felicidade ao ser humano. No final do século XIX, esse registo mudou. Houve uma espécie de reinterpretação do homem, com a introdução de valores menos positivos como o da degenerescência, a partir de teorias científicas à partida neutras, como o darwinismo. Isto veio a dar lugar a ideologias, como a do nacional-socialismo. Aliás, ainda hoje todos os movimentos mais ou menos fascistas vão beber aí.
(...) Há esperança para o homem no século XXI(...)? Gostava que houvesse. Se as utopias do século XIX eram positivas, as do século XX foram negativas. Huxley e Orwell intuíram de forma genial, nas décadas de 50 e 60, a programação dos indivíduos e das sociedades. Basta olhar à volta, estamos dentro do livro de Orwell [1984]. É cedo para dizer qual será a nova utopia. Parece certo que não virá pela via política. Os actuais poderes políticos fazem tudo para despolitizar as pessoas e desviar a noção de democracia da sua verdadeira função. O excesso securitário que nos propõem passa por aí. Se há uma condição para um homem novo, é a educação: aprender a pensar de forma racional e a conhecer os outros.

Filomena Naves in DN.pt