A palavra do Papa - por Adriano Moreira

Provocou muitos comentários, e evidente alvoroço, a afirmação do Papa Francisco de que esta economia mata, referindo-se com evidência e clareza à metodologia que tem por horizonte e conceito estratégico o orçamento, por legitimação da fadiga tributária dos povos o Fiscal Compact da enigmática senhora Merkel, que usa com perícia o poder das palavras e dos silêncios.
Baseado na tormenta financeira global que o aflige, o Papa, porque ela está a adoecer severamente os povos de que se considera pastor, e veio do fim do mundo para ver de perto a transformação do Mediterrâneo num cemitério e observar as inquietantes modalidades da luta muçulmana, que pode somar à crise a perturbação alargada da paz, com as referidas críticas e reservas, não alterou a doutrina do Concílio Vaticano II nem a conclusão que Paulo VI levou à ONU, quando ali proclamou que o desenvolvimento é o novo nome da paz.
O que mudou foi a circunstância mundial, incluindo a quietude do Conselho Económico e Social da ONU, o facto de os planos antes ali aprovados não terem impedido que mais de metade dos Estados que a integram não tenham sequer capacidade para responderem aos desafios da natureza em cólera, por exemplo tufões, inundações, guerra dos povos, fome, pestes, e assim por diante.
O todo apoiado na vasta ignorância dos reais poderes supranacionais em exercício, abusando da ignorância dos valores que devem ser componentes, orientadores, e limites das liberdades que incluem a livre iniciativa económica, em relação à qual o insuspeito John Locke (1632-1704) distinguiu entre liberdade e licença, o que significa que a primeira não pode ser separada da justiça.
Para traduzir a questão com simplicidade basta recordar as palavras do companheiro de Mandela, o bispo Tutu, procurando exprimir as aspirações dos pobres e oprimidos do Sul do Mediterrâneo, especialmente do seu próprio país: "Para eles, isso significa que a liberdade se traduz em estarem bem abastecidos de água potável e em disporem de eletricidade com o simples apertar de um interruptor; em poder viver num lar digno e trabalhar num bom emprego; em poder enviar os seus filhos à escola e em desfrutar de uma saúde acessível. O que quero dizer é - de que servirá ter feito esta transição (fim do apartheid) se não aumenta e melhora a qualidade de vida destes povos?"
Nessa data, os relatórios da ONU, então ativa, ainda consideravam a pobreza como uma situação confinada ao Sul dos ocidentais. O Bispo de Roma, que os cardeais encontraram no fim do mundo, verifica que a situação dos povos que se mantiveram mais ou menos ligados ao seu ministério não lhe deixa esquecer a que enfrentou na maior parte da sua vida de sacerdote. Nem pode também deixar de recordar-lhe o Concílio, as esperanças ali semeadas, a convicção de Paulo VI e as esperanças, depois perdidas, que foram semeadas.
De modo que o Papa Francisco não esqueceu, antes relembrou, a doutrina conciliar que afirmou o privilégio dos pobres, do que voltam a lembrar-se, com ele, o que ainda existe na Europa de democracias cristãs, os sociais-democratas que retomam os seus princípios e o socialismo democrático que conserva as suas referências.
Defendeu a livre iniciativa respeitadora da justiça, e não a orientada pela ganância, usando o saber e a técnica sem substituir os valores das coisas pelo preço das coisas.
Os partidos são organizados para, sem omitirem o despotismo democrático que Toqueville em seu tempo condenou, proporem ao eleitorado um programa e obterem o poder de o praticar, uma coincidência frequentemente abandonada, como se a legitimidade de exercício não dependesse de uma relação respeitada entre ambas as finalidades.
Já foi lembrado que o New Deal de Roosevelt foi atacado por inconstitucional. Entretanto a evolução ocidental consagrou largamente o Estado social, mas parece que a pregação em causa está a lembrar que a crítica tende para a atitude daquele tempo.
Adriano Moreira in DN.pt