A verdadeira práxis política

Nesta arte da palavra, aqui identificada com a verdadeira retórica, consiste a verdadeira práxis política. Vistas as coisas deste ângulo, já não será tão difícil perceber porque é que Sócrates afirma no diálogo com Cálicles que nenhum dos famosos políticos de Atenas (Péricles, Címon, Milcíades e Temístocles) desfrutou realmente de verdadeiro poder político. O Sócrates platónico exige dos políticos que eles façam justos e felizes os cidadãos. Se eles não possuem este poder, então, tudo o que eles ou a multidão que os segue possa considerar como exercício de poder e força não passa de mera ilusão e engano. Isto mostra claramente que a concepção platónica da política não pode ser identificada, como tantas vezes se faz, com qualquer concepção política vigente no seu tempo.
Com certeza que Platão não pode emergir totalmente do seu tempo histórico. Porém, isso não nos deve fazer esquecer que Platão, na sua definição da filosofia e da política, é alguém que luta contra a corrente em nome de uma compreensão diferente do destino do homem.
Partindo desta nova concepção da política, Sócrates pode criticar a prática política dominante em Atenas: «Foi sem sabedoria e justiça que esses homens de Estado encheram a cidade de portos, estaleiros, muralhas, impostos e outras bagatelas do género». O mesmo tipo de crítica atinge a sofística: também eles não são realmente aquilo que dizem ser: mestres de virtude. Muito menos da verdadeira arete (ἀρετή) que é a arete política. Por isso, a sua retórica não passa de um simulacro da verdadeira arte da palavra.
Podemos, agora, compreender melhor porque é que no mesmo diálogo Sócrates é apresentado, primeiro, como alguém desinteressado e desligado da política e, depois de introduzido o novo conceito de política, como o único cuja acção pode reclamar legitimamente a designação de verdadeira práxis política.
Quando se fala do nexo íntimo entre filosofia e política na perspectiva platónica é preciso ter presente que não se trata de fazer uma apologia incondicional da filosofia no sentido de todos os homens (cidadãos) se dedicarem à filosofia. O objectivo perseguido pelo texto platónico é mostrar que todos devem orientar a sua acção pela justiça. Só aí poderão encontrar a sua plena realização como homens uma vez que a arete humana e a arete política coincidem, segundo a posição platónica. A filosofia cabe o especial privilégio de contribuir para que esse telos seja alcançado com maior ou menor perfeição em cada caso.
António Manuel Martins, Universidade de Coimbra, Hvmanitas — Vol. XLVII