Apocalipse dos partidos? - por M. M. Carrilho

Mas o mal estará só nos partidos, ou também na sociedade? Cada vez me parece mais que esta é a pergunta decisiva que constantemente se evita. É um facto que os partidos políticos vivem hoje sob o signo do apocalipse, cuja forma contemporânea é a de "um fim que não acaba de terminar", como inspiradamente sugeriu um dia o filósofo Jacques Derrida.
Permanentemente criticados, eles resistem todavia a tudo, a todas as denúncias das patologias das democracias que parecem ter a sua origem no sistema partidário: no seu fechamento, na sua distância face à sociedade civil, no seu clientelismo, no seu vazio ideológico, etc..
Nuno Saraiva dizia isto mesmo aqui no Diário de Notícias, no passado sábado (num texto em que desmontava com argúcia o "caso Capucho"), ao escrever que "o debate que importa fazer é sobre a razão da existência dos partidos e os fins que perseguem, o modo como se organizam e funcionam, o que significa a pertença e a militância e, sobretudo, porque atingiram um patamar tão rasteiro no que à confiança e à respeitabilidade por parte dos cidadãos diz respeito".
Assim é, de facto. Mas é bom ter consciência de que as críticas que hoje se fazem aos partidos políticos são em geral críticas que se repetem, quase nos mesmos termos, há mais de cem anos. Já então elas eram absolutamente centrais no debate político europeu - 1914 foi um ano intenso nessa matéria -, que também já então denunciava uma aguda descredibilização dos partidos, bem como as perversidades do parlamentarismo e a sua pantanosa dependência dos interesses dos partidos.
Apesar disso, os partidos sobreviveram com facilidade a todas essas críticas que, com perspectivas muito diversas, marcaram todo o século XX e que nos dias de hoje se fazem de novo sentir com grande virulência, ressuscitando o tema do declínio partidário e relançando (também pela enésima vez) a apologia da espontaneidade, da autenticidade, etc., dos mais variados movimentos sociais e políticos.
Acontece contudo que, por mais que isso surpreenda, os partidos políticos continuam a ocupar um lugar incontornável nas democracias contemporâneas. E porquê? É isso que é fundamental perceber, refletindo para lá do primarismo que apenas faz deles os bodes expiatórios de uma atávica incapacidade coletiva, com cada vez maiores dificuldades em se assumir.
E nessa reflexão são de três ordens, a meu ver, os pontos nucleares que é preciso ter em conta. Em primeiro lugar, é preciso ver que os partidos são instituições que cumprem funções sociais fundamentais na vida das nações: a associação de pessoas que partilham ideias, valores ou projetos, a apresentação de candidatos às diversas eleições, a mobilização dos cidadãos no momento das campanhas eleitorais, a formação dos governos ou a organização do funcionamento dos parlamentos.
Seguidamente, é de notar o constante aumento, nas últimas três ou quatro décadas, e em todas as democracias, da mobilidade/infidelidade dos eleitores em relação às diversas opções partidárias. E essa mobilidade/infidelidade toma a forma de uma liberdade que se desenvolve em simultâneo com diversos outros fenómenos de natureza civilizacional, como são o acelerar das formas de individualismo, a massificação escolar, a explosão dos media e os seus efeitos, etc.
E isto acontece em relação a todas as forças partidárias, como Pierre Martin mostrou num exaustivo estudo que contempla os resultados de todas as eleições legislativas em 15 países europeus, de 1945 até 2013: se por um lado ele mostra que a mobilidade cresce constantemente, por outro lado ele mostra também que a erosão é simétrica nos partidos à direita e à esquerda.
Por fim, importa dar a maior atenção ao significado do protagonismo individual dos dirigentes partidários. Este fenómeno, o da cada vez maior personalização do poder, marcou decisivamente a transformação da democracia "dos partidos" numa democracia "do público", como Bernard Manin lhe chamou. Mas esta democracia do público, ao contrário do que tantos profetizaram, rapidamente integrou a própria realidade partidária, acabando mesmo por aumentar deste modo a sua influência.
Muito disto se deve, justamente, ao facto de a personalização política ter aparecido nas democracias ocidentais, desde Roosevelt, justamente como uma resposta à crise de representatividade dos partidos políticos, tal como ela tinha sido vivida nas primeiras décadas do século XX.
Ignorar tudo isto, como constantemente acontece no nosso "comentariado nacional", e optar pela diabolização dos partidos políticos, é um erro grosseiro. Até porque esta diabolização aparece hoje como uma das principais formas que, na nossa sociedade, tomou a impotência coletiva, cruzando bem a vitimização social com a irresponsabilização individualista.
E dificilmente se sairá desta situação enquanto - como tantas vezes tenho dito - não se descobrir um modo eficaz de transformar as multidões em coletivos, os estados de alma em projetos políticos e os slogans em convicções mobilizadoras. Sem estas mudanças, tudo continuará na mesma.
Elas deviam, por isso, ser a principal preocupação dos partidos. Infelizmente, como certamente vamos confirmar no próximo fim de semana com o Congresso do PSD - mas podia ser de qualquer outro partido - a situação mantém-se inalterada, o apocalipse partidário continua sem nenhum verdadeiro fim à vista.
Na verdade, o que hoje é preciso é começar a olhar mais para a sociedade do que para os partidos, deixando de fazer deles os bodes expiatórios do que a sociedade não quer, ou não consegue, ver. Talvez assim se compreenda melhor porque é que, apesar de tantas e tão contundentes críticas aos partidos que temos, não aparece de facto nenhuma alternativa, ou seja, nenhum partido mais aberto, mais credível, mais inovador, mais mobilizador, mais dedicado ao bem comum, enfim, mais virtuoso. E a resposta a este impasse encontra-se na sociedade, não se encontra nos partidos: haja a lucidez e a coragem de o reconhecer. 
Manuel Maria Carrilho in DN.pt