Dêem-me algo maior que eu próprio!

(A lembrar os 40 anos do 25 de abril de 1974)
Naquela tarde tomei uma decisão que ia mudar toda a minha vida. De agora em diante, ia apenas fazer o que me apetecia.
Largar as amarras das responsabilidades, dos deveres e das obrigações. Lutar por um ideal maior: a liberdade de poder escolher o que fazer. Poder determinar o futuro, poder decidir o meu rumo! Escolher o que me apetece, sem ninguém me dizer o que fazer. Tinha que viver essa liberdade! Haverá algo maior que a liberdade individual?
Os primeiros tempos foram inebriantes e as possibilidades infinitas. Como uma folha em branco, podia desenhar a minha vida na direcção e na cor que me apetecesse. Podia partir ou ficar. Fazer ou não fazer. Ir por aqui ou por ali. Mas mais importante é que a folha estava em branco e podia escolher o que me apetecesse.
Mas o que fazer em primeiro lugar?
Com tantas possibilidades, torna-se difícil escolher. Mas como os desejos não faltam, dá-se um pequeno passo numa direcção. Não interessa bem a direcção, desde que se dê esse passo, pequenino e decidido. E depois dele vem outro – talvez noutra direcção, talvez não – e de seguida mais um. E esses pequenos passos começam a traçar um caminho.
Mas para quem quer viver tudo o que deseja, um pequeno passo já não basta. É preciso outro, outro e outro. É necessário perseguir essa liberdade. É necessário levar a sério o desejo. Temos que honrar o que queremos. Vamos avançar, vamos!
Dou por mim e já não ando: corro apenas. Passo atrás de passo, rápido rápido, porque não há tempo a perder. Não posso deixar nada de fora, não posso deixar nada por viver. Trata-se da minha vida, trata-se da minha liberdade, trata-se da minha felicidade. Tenho que ser livre de escolher. Sempre.
Chego a um sítio – e sim ele é bom – mas de seguida lanço-me para outro, sem poder parar. Como posso ficar parado, quando o desejo não dorme? O gozo de cada experiência parece diminuir. Mas o desejo só parece aumentar. O que apenas me faz correr mais.
As pessoas e as situações passam, uma depois da outra. Gosto de todas, mas nenhuma me basta. Tenho que continuar, posso perder alguma coisa que aí vem.
O passado já não me chega. Esqueci o sabor dos abraços demorados, das refeições partilhadas, dos prazeres pequenos.
O presente já não me interessa. A minha senda é pelos grandes desejos, pela grande liberdade do homem, e ela virá no futuro, tem que vir.
O futuro já não me motiva. Corro atrás do Sol para nunca o apanhar. Corro atrás de um amanhã que foge sempre de mim.
Tudo passa cada vez mais rápido, e eu continuo a perseguir a minha liberdade.
E eis que por fim, um cansaço de viver se apodera de mim. Já vi o mundo e o mundo já me viu. Já conheci mais pessoas do que me lembro, e já vivi mais histórias do que conseguiria contar. Sei que ainda haveria mais para ver e mais para viver, mas o meu interior desinteressou-se. Tornei-me indiferente, o fogo do meu desejo arrefeceu, e mais que tudo… a minha alegria desapareceu.
Percebi então que durante anos, corri sempre por mim. Para eu exercer a minha liberdade, para eu poder escolher, para eu poder fazer o que me apetecia.Nada mais que a minha vontade me motivou: mais nenhuma causa me apaixonou, mais ninguém me fascinou, mais nada me cativou. Corri apenas por mim e pelos meus desejos, e cheguei ao final sem nada. Percebi que todos os meus passos – curtos, rápidos, ansiosos – afastavam-me do que eu mais procurava. A liberdade que tanto queria apanhar, era uma sombra que sempre fugiria de mim.
Mas neste dia o Sol nasce de novo – e depois de perseguido todo o desejo, depois de fazer tudo o que me apetecia – resta-me apenas uma vontade: poder voltar àquela tarde, e fazer uma escolha diferente.
Não me digam a mim que viver é fazer o que me apetece. Dêem-me antes algo maior que eu próprio, algo mais fundo que a minha liberdade, e partirei de novo. E desta vez a minha alegria não terá fim.
in inesperado.org