Estado quase novo - por Fernanda Câncio

Era um regime porreirito. É certo que tinha de acabar pela força, e que é uma vergonha que quem mandava e os membros da polícia política não tivessem sido castigados; inclusive o dia em que caiu foi o mais importante da nossa história. Mas estava-se bem, no Estado Novo.
É o que se conclui do inquérito efetuado em janeiro pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa em colaboração com o Expresso e por este divulgado: 42% dos respondentes dizem que o Estado Novo teve mais coisas negativas do que positivas; 28% acham que foi meio/meio e 19% que foram mais as coisas positivas. Ou seja, a maioria - 47% - vê um regime bom ou assim-assim. Os mesmos inquiridos acham porém que os responsáveis do regime deposto a 25 de abril - dia mais importante da história portuguesa para 59% - deviam ter sido julgados (56%); 45% que não foi feita justiça em relação aos pides (31% não sabem - saberão o que seja a PIDE?) e, não fosse aquele golpe a mandar a coisa abaixo, 55% acreditam que outro o faria brevemente.
Não conhecendo o resto do estudo, a ser apresentado numa conferência, anseio por saber se aos 1254 inquiridos foi pedido para explicarem por que raio acham que um regime tão anódino, quiçá simpático, deveria ter sido derrubado e os seus responsáveis castigados, assim como quais seriam, concretamente, os seus aspetos positivos e negativos. Já como a maioria dos respondentes valorizam a ideia de democracia não preciso que perguntem.
Nada disto é novidade, tendo em vista o que se ouve em fóruns radiofónicos e televisivos? Certo, mas evidência científica é outra coisa. Concluir disto o quê? O típico colunista/taxista português assacará, enojado, a "culpa" aos "políticos", essa raça de malandros que, claro, só medra na democracia (Salazar devia ser limpa-chaminés) e "deu cabo dela". Eu, perdoem, culpo a democracia. Esta nostalgia vingativa, que valoriza um passado miserável para desvalorizar o presente, esta espécie de iliteracia dos direitos é, paradoxalmente, obra dela. Mudou-nos tanto e tão completamente, fez--nos tão outros, tão outro País, permite-nos tomar tanta coisa por certa que já não somos, como comunidade, capazes de imaginar (ou lembrar, que é imaginar) o que é estar ou ser sem. Voltar atrás é tão impensável que podemos até brincar, namorar com isso.
Cuidado, porém: todos os impensáveis sucedem também por ninguém acreditar que sejam possíveis. Os impensáveis bons, como o 25 de Abril, e os outros.
Fernanda Câncio in dn.pt