Utopia e esperança - por José Comblin

“Poderíamos pensar que o maior perigo da utopia seria a irrealidade e que as melhores utopias seriam as que mais se aproximem da realidade. Isso não é verdade. O que se pede às utopias não é o modelo da realidade, nem sequer um plano para a ação. Está claro demais que qualquer plano baseado na utopia estaria condenado a fracassar. Por isso mesmo, a utopia mais plausível é a mais perigosa, porque pode levar à tentação de aplicá-la. A mais improvável pode ser a melhor porque não corre esse perigo. O que se pede à utopia é uma função de fermentação prévia, da qual não se pode saber o que vai sair um dia.
O maior perigo da utopia consiste em se parecer demais com o passado. O sonhos que não propõem outro futuro a não ser o regresso para o passado, para um estado mais primitivo da humanidade, são os mais perigosos. Correspondem a certo infantilismo do qual é difícil a pessoa se desfazer. Sonhos de reforma social que, na realidade, são apenas saudades da família tribal, do comunismo tribal primitivo, de uma idade técnica e indiferenciada, romantismos da natureza, da comunidade pequena, das relações de vizinhança, do contato direto, dos ritmos biológicos e cósmicos. Quantos sonhos desses são apenas fuga diante da dificuldade de aceitar a sociedade tecnológica e complexa contemporânea!
As utopias que voltam ao passado são as mais perigosas, porque paralisam a ação em vez de promovê-la. Tendem a bloquear a evolução em lugar de favorecê-la. Até certo ponto, a atração do passado é inevitável. Nota-se o mesmo nas profecias bíblicas. As profecias não valem por esse apelo ao passado. Valem apesar desse apelo. Valem porque conseguem superar essas vozes que chamam para o passado e, apesar de tudo, anunciar alguma novidade, algo que ainda não apareceu, ainda não foi vivido nem conhecido.
A esperança cristã vive-se no meio das revoluções fracassadas que preparam outras revoluções fracassadas. É fácil demais deixar-se entusiasmar por uma revolução como se fosse a salvação final. A verdadeira esperança constrói se acima das ruínas das ilusões perdidas, dos esforços desiludidos, dos sonhos traídos. Resignar-se e refugiar-se na contemplação da imutabilidade das estreias não passa de covardia ou de falta de vitalidade. É preciso sonhar sempre e recomeçar indefinidamente a mesma projeção para um futuro vislumbrado utopicamente.”

José Comblin in Vivendo a esperança