Ciência: a "tecnologia da verdade"

Tente desenhar uma linha recta, ou um círculo, «à mão». A não ser que tenha um talento artístico considerável, o resultado não será grande coisa. Mas com uma régua e um compasso, por outro lado, poderá eliminar praticamente as fontes da instabilidade humana e obter um resultado satisfatório, limpo e objectivo, sempre igual.
É a linha realmente recta? Quão recta? Em resposta a estas questões desenvolvemos testes cada vez mais precisos, seguidos de testes da precisão desses testes, e assim por diante, consolidando o nosso progresso em direcção a uma cada vez maior precisão e objectividade. Os cientistas são tão vulneráveis ao raciocínio caprichoso, tão passíveis de serem tentados por motivos baixos, tão subornáveis, crédulos e desleixados como o resto da humanidade. Os cientistas não se consideram santos; nem sequer fingem ser sacerdotes (de quem, de acordo com a tradição, se espera melhores resultados do que os obtidos por todos nós na luta contra a tentação e a fraqueza moral). Os cientistas acham-se tão fracos e falíveis quanto qualquer outra pessoa, mas ao reconhecer essas mesmas fontes de erro em si mesmos e nos grupos a que pertencem, conceberam complicados sistemas para atar as suas próprias mãos, impedindo energicamente que as fragilidades morais e os preconceitos contaminem os seus resultados.
Não são apenas os instrumentos, os utensílios físicos próprios da actividade, que foram concebidos para resistir ao erro humano. A organização dos métodos está também sob pressão da selecção rigorosa a favor de cada vez mais fidedignidade e objectividade. O exemplo clássico é a experiência na qual nem as pessoas sujeitas ao teste nem os próprios cientistas que fazem o teste sabem quem está a tomar o fármaco que se pretende testar e quem está a tomar uma substância inactiva, de maneira a que nenhuns desejos e pressentimentos subliminares possam influenciar a percepção dos resultados. A concepção estatística quer das experiências individuais quer de conjuntos de experiências faz assim parte da prática geral de tentativas de rotina nas quais investigadores independentes procuram reproduzir essas experiências, o que por sua vez faz parte de uma tradição — imperfeita, mas reconhecida — de publicação dos resultados positivos e negativos.
O que inspira a fé na aritmética é o facto de centenas de escrevinhadores, trabalhando independentemente no mesmo problema, chegarem todos à mesma resposta (exceptuando aqueles poucos cujos erros podem ser encontrados e identificados de forma pacífica para todos). Esta objectividade incomparável encontra-se também na geometria e nos outros ramos da matemática, que desde a antiguidade tem sido o próprio modelo do conhecimento positivo, em oposição ao mundo do fluxo e da controvérsia. No diálogo Ménon, de Platão, Sócrates e o escravo descobrem em conjunto um caso especial do teorema de Pitágoras. O exemplo de Platão exprime o reconhecimento claro de um cânone de verdade ao qual todos os que procuram a verdade devem aspirar, um cânone que não só nunca foi seriamente desafiado, mas que foi tacitamente aceite — e no qual, na verdade, se confia fortemente, mesmo em casos de vida ou de morte — pelos mais vigorosos oponentes da ciência. (Ou conhece o leitor alguma igreja que controle o seu rebanho, e os seus donativos, sem o benefício da aritmética?)
Sim, mas a ciência quase nunca parece assim tão incontroversa, tão consolidada, como a aritmética. Na verdade, as facções científicas rivais envolvem-se muitas vezes em batalhas de «evangelização» tão ferozes quanto as que encontramos na política, ou até mesmo nos conflitos religiosos. A exaltação com que alguns defensores da ortodoxia científica defendem muitas vezes as suas doutrinas contra os heréticos não tem, provavelmente, paralelo noutras áreas do combate retórico entre os seres humanos. Esta competição pela popularidade — e, claro, pelos financiamentos — são concebidas para captar a atenção e, se forem bem executadas, conseguem-no. O efeito secundário disto é desviar a atenção do imenso pano de fundo incontestado de qualquer ciência para a guerra travada nas suas orlas — e é esse imenso pano de fundo que dá às suas orlas tanta força. O que é assumido por todos, nestas acaloradas desavenças, é uma colecção enciclopédica e organizada de factos científicos banais, com os quais todos concordam.(3)
Robert Proctor chama acertadamente a nossa atenção para uma distinção entre a neutralidade e a objectividade. Os geólogos sabem muito mais sobre xistos petrolíferos do que acerca de outras rochas — por razões económicas e políticas óbvias — mas o que eles sabem sobre os xistos petrolíferos é objectivo. E muito do que eles aprendem sobre os xistos petrolíferos pode ser generalizado a outras rochas menos favorecidas. Queremos que a ciência seja objectiva; mas não devemos desejar que a ciência seja neutra. Os biólogos sabem muito mais sobre a mosca da fruta, Drosophila, do que sabem acerca de outros insectos — não porque se possa enriquecer à custa das moscas da fruta, mas porque é mais fácil saber coisas acerca das moscas da fruta do que acerca da maioria das outras espécies. Os biólogos sabem também muito mais sobre mosquitos do que sobre outros insectos — neste caso porque os mosquitos são mais prejudiciais para as pessoas do que outras espécies que seriam muito mais fáceis de estudar. As razões para concentrar a atenção na ciência são variadas, e todas elas concorrem para fazer com que os rumos da investigação estejam longe de ser neutras; mas essas razões não fazem, geralmente, com que a ciência seja menos objectiva. Às vezes, é verdade, um ou outro preconceito conduz à violação dos cânones do método científico. Estudar o padrão de certa doença nos homens, por exemplo, ao mesmo tempo que se negligencia a recolha de dados sobre a mesma doença nas mulheres, não é algo que se limita a não ser neutra; é má ciência, tão indefensável em termos científicos como em termos políticos.
Os métodos da ciência não são completamente seguros, mas podem ser constantemente aperfeiçoados. E o que é igualmente importante: existe uma tradição de crítica que obriga ao aperfeiçoamento sempre que se descobrem defeitos, e seja onde for que se descubram defeitos. Os próprios métodos da ciência, tal como tudo o que existe, são objecto do escrutínio científico, transformando-se os métodos em metodologia, a análise dos métodos. A metodologia, por seu turno, fica debaixo do olhar da epistemologia, a investigação da própria investigação — não há nada que escape ao questionamento científico. A ironia é que estes frutos da reflexão científica, que nos mostram as manchas indeléveis da imperfeição, são por vezes usadas por quem desconfia da ciência como pontos de partida para negarem a esta um estatuto privilegiado na área da procura da verdade — como se as instituições e práticas que eles tomam como concorrentes da ciência não estivessem ainda em pior posição no que respeita a estas matérias. Mas onde estão os exemplos do abandono da ortodoxia religiosa face a provas irresistíveis? Na ciência, as heresias de ontem tornaram-se vezes e vezes sem conta as novas ortodoxias de hoje. Nenhuma religião exibe este padrão evolutivo ao longo da sua história.
Que diferença existente nestas instituições pode explicar este facto? Trata-se, claramente, do impulso fornecido pela fé que os cientistas depositam na verdade. Considerem-se os diagramas de Richard Feynman da electrodinâmica quântica, por exemplo.(4) Quando os vi pela primeira vez, pareceram-me uma espécie de numerologia, uns guias da verdade grotescamente improváveis, mais parecidos com deitar cartas de tarot ou deitar sortes do que com ciência. Parecia estranho que um processo tão bizarro pudesse gerar a verdade; mas, na realidade, funciona: e pode compreender-se por que motivo funciona (com esforço!). E porque funciona, e porque pode demonstrar-se que funciona, gerando resultados de uma precisão e constância espantosas, foi aceite como parte do método científico ortodoxo. E se se conseguisse provar que deitar sortes, ou a astrologia, geram resultados de uma precisão análoga, também estas práticas poderiam ser acomodadas na ciência ortodoxa, juntamente com uma teoria que explicasse por que razão funcionam. Mas é claro que esses métodos nunca foram legitimados. Os cientistas têm fé na verdade, mas não uma fé cega. Não é como a fé que os pais têm na honestidade dos seus filhos, ou a fé que os adeptos desportivos têm na capacidade dos seus heróis para ganhar. É antes como a fé que qualquer pessoa pode ter num resultado a que várias grupos de pessoas chegaram de forma independente.

Daniel C. Dennett tradução de Desidério Murcho in cfh.ufsc.br