Convergência numa ética comum : os direitos do homem - por Bento Domingues

“Haver injustiça é como haver morte. / Eu nunca daria um passo para alterar / Aquilo a que chamam injustiça do mundo. / Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda / E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.” A ronha destes versos de F. Pessoa, o fingidor, é uma peça essencial para o debate em torno da fundamentação da ética, isto é, da experiência intrínseca - do sentido que insiste e persiste em proposições como esta : “Auschwitz, nunca mais !”
Os pós-modernos consideram infrutíferas e obsoletas todas as tentativas de fundamentar a ética. Além de ser impossível, foi o empenho da superada modernidade. Os cientistas continuam a pensar que a ética - ao contrário da ciência, que é racional e intersubjectiva - vem sempre marcada de subjectividade. No sentido forte da palavra, também o movimento comunitário americano procura não fundamentar a ética. Visa apenas reconstruir a sua racionalidade, afirmando, face aos liberais, que é impossível levar a cabo essa tarefa sem partir de comunidades concretas em que os indivíduos estão enraizados. O chamado “liberalismo político” considera que a fundamentação não só é impossível como nem sequer é necessária, embora não se prive um tipo de justificação racional dos valores das sociedades de democracia liberal. Os seguidores do filósofo espanhol X. Zubiri pensam que se pode fundar a moral na realidade da pessoa e na universal tendência para a felicidade. A ética dialógica ou discursiva alemã oferece uma minuciosa fundamentação racional da moral nas acções comunicativas e no facto da argumentação. Adela Cortina tentou uma fundamentação racional da moral, articulando de forma complementar as duas últimas tendências. Sustenta que podemos argumentar acerca de tudo e chegar a acordos que nos permitem, juntos, construir o mundo (Cf. “Ética Civil e Religião”, Paulinas, 1995, p. 47).
Para esta filosofia, a ética civil - que outro, com alguns matizes, chamam “laica” ou “secular” - é, em princípio, a ética dos cidadãos, ou seja, a moral que os membros de uma sociedade pluralista tem de incarnar para que a convivência pacífica, agradável, seja possível, dentro do respeito e da tolerância para com as diversas concepções do mundo. O seu fundamento e conteúdo essencial são os direitos do Homem : direitos individuais, direitos económicos e direitos sociais, ainda que hierarquizados de forma diferente, segundo a diversidade dos povos. Encontram-se neles as disposições mínimas para viver no horizonte de uma só família humana com passado, presente e futuro. Somos, por isso, corresponsáveis pela memória humana, pela solidariedade mundial, pelas condições de vida em relação às novas gerações. A ética do futuro não pode ser deixada para as calendas gregas. Pelo contrário. Trata-se da ética do aqui e agora, para que mais tarde haja um aqui e agora (Cf. Gerome Bindé, PÚBLICO 20/10/97, p. 18). Se não agirmos a tempo, as gerações futuras não terão sequer tempo de agir, como nos lembra F. Maior.
Esta responsabilidade deriva da experiência ética fundamental, condensada no princípio mais geral do agir : “Deve-se fazer o bem e evitar o mal.” Independentemente da convicção de que Deus existe ou não e da razão teórica reencontrar nessa experiência todos os seus critérios, é no âmbito dessa experiência que o reconhecimento dos direitos humanos , fruto de várias tradições, surge como uma base sólida, aberta a fundações plurais da democracia. Lucien Sève observa que a universalização ética não é, de modo nenhum, a uniformização das sabedorias concretas étnicas, religiosas ou filosóficas - mas a partilha dos valores últimos e de obrigações em relação à nossa humanidade comum. Pode haver muitas abordagens diferentes dos direitos do homem. O importante é respeitá-los por toda a parte e da mesma maneira. A universalidade não exige mais do que isso (Cf. “Para uma Crítica da Razão Bioética”, Ed. Piaget, 1997, p. 93).
Pode estranhar-se que em termos de bioética, de ética económica, de internética ou ética “on-line”, de ética do futuro, os produtos dos comités de tais designações sejam tão modestos. Tendo, porém, em conta as descobertas científicas e os avanços tecnológicos mercantilizado, configuradores da nossa civilização feita de substituições cada vez mais rápidas, já não é mau que existam grupos de investigação e diálogo situados no coração das mudanças, para que, de forma contínua, as possam reavaliar do ponto de vista ético.
Para as religiões - pelo menos para as monoteístas - mais acostumadas a informar do que se deve fazer do que a dialogar sobre o que se deve fazer, esta situação é um desafio evidente e uma grande oportunidade. Num mundo cada vez mais plural, é no aprofundamento da originalidade de cada uma das nossas tradições que podemos sentir a conivência profunda com o que há de mais criativo, vivo e singular na cultura dos outros. Sem confundir religião com ética, existem entre elas profundas afinidades. Para reconfigurar uma ética cívica comum para o nosso tempo, as éticas laicas e as religiosas precisam de se interpelar mutuamente sem moleza, mas cultivando as virtudes da tolerância, do diálogo, da magnanimidade e da modéstia.
Bento Domingues in triplov.com