Diferentes: certo e errado; bem e mal - por Ramiro Marques

O certo, o errado, o bem e o mal não têm o mesmo significado nem a mesma fundamentação na ética da virtude e na ética deontológica. Para a primeira, esses conceitos têm que ver directamente com as leis humanas e os costumes. Para a segunda, estão no cerne da ética e dependem da forma como o sujeito usa a razão universal para descobrir os grandes princípios éticos. Enquanto que para a ética grega o certo e o errado dependem dos contextos culturais e são, portanto realidades variáveis, para a ética deontológica são conceitos que ultrapassam as limitações contextuais e circunstanciais. Para se perceber melhor o significado destes conceitos, convém perguntar: quem são os criadores das leis? A resposta da ética grega é que as leis são criadas pelos legisladores, aqueles que, em determinado momento do processo histórico, outorgam uma Constituição aos cidadãos. Para a ética cristã, a resposta é Deus. É a lei divina que estabelece os fundamentos e os critérios das leis humanas. As leis humanas são boas ou más consoante respeitam ou violam a lei divina. Para a ética deontológica a resposta é: a razão humana universal. Ou seja, é a razão universal que dita a Lei Moral. É evidente que esta resposta é inconclusiva e incoerente. Há uma razão humana ou há tantas razões humanas quantas pessoas dotadas de razão? É evidente que não há uma razão humana; há muitas razões humanas. A razão humana é constante e imutável? Logicamente, que as razões humanas mudam sob a influência do “ar dos tempos”, as culturas e as circunstâncias. O conceito de justiça não é universal e único. Muda consoante as culturas, o “ar dos tempos” e as circunstâncias. Por exemplo, quando um grupo de sobreviventes se encontra perdido numa ilha deserta, a luta pela sobrevivência cria circunstâncias que mudam o conceito de justiça ou lhe fazem perder importância face a outros valores que se tornam, naquelas circunstâncias, primordiais, mas que, em situações normais, seriam desprezíveis ou secundários. 
Importa fazer outra pergunta: quem é que permite, proíbe e obriga? Qualquer pessoa sensata dirá que são as leis, os costumes e os tribunais. Não é uma razão universal que dita a permissão, a proibição ou a obrigação, como pensava Kant. Por exemplo, quando uma cultura proíbe o roubo, cria leis e costumes a dizerem que roubar é errado. O mesmo acontece com as obrigações. O Estado, através dos legisladores, faz leis a obrigar as pessoas a pagarem impostos e taxas ou a prestarem serviço militar. Pode, então, acontecer que uma determinada cultura proíba, por exemplo, o aborto, e as leis do país o permitam. O mesmo para a eutanásia, por exemplo. Durante o regime nazi, as leis alemãs permitiam todo o tipo de aberrações e crueldades contra os judeus. Na Grécia antiga, o infanticídio, nomeadamente dos recém-nascidos deficientes, era permitido. Tudo isto nos leva a considerar que há dois níveis de certo e errado e de bem e de mal: o nível dos costumes e das leis, ou seja o nível das convenções; e o nível da ética. Para os gregos, era certo tudo o que permitia que o indivíduo cumprisse a sua função de forma excelente e era errado tudo o que impedia o indivíduo de atingir a excelência. O certo e o bem são o que fazem o indivíduo florescer. O errado e o mal são o que impedem o indivíduo de florescer. Como se vê, os conceitos de certo e errado sofreram profundas modificações no seu significado, mas ninguém levou mais longe essa mudança de significado do que Kant com a tese do imperativo categórico. 
Esta diferença de níveis conduz-nos a procurar estabelecer aquilo que distingue a natureza da convenção. Aquilo que é certo por natureza é tudo aquilo que permite ao indivíduo cumprir excelentemente a sua função. Se uma acto potenciar o florescimento do indivíduo e não violar as leis e os costumes da sua polis, esse acto é certo por natureza e por convenção. Aquilo que é certo por convenção é aquilo que está de acordo com as leis humanas e os costumes. Pode haver uma contradição entre o certo por natureza e o certo por convenção. Como é evidente, a perseguição e o extermínio dos judeus pelos nazis podia estar certa por convenção, na medida em que estava de acordo com as leis nazis, mas violava o que está certo por natureza, porque exterminar um povo não ajuda em nada ao cumprimento e realização, de forma excelente, de seja qual for a função humana. O genocídio nunca pode ser uma actividade que potencia o florescimento das pessoas que o praticam. Outra implicação desta distinção é que a ideia moderna de que “todas as pessoas são iguais” se revela falsa por natureza, embora possa estar certa por convenção. Qualquer pessoa sensata e medianamente inteligente verifica que há crianças mais inteligentes do que outras e que umas são altas e outras baixas, algumas têm muito jeito para a música e outras são duras de ouvido, etc. Essa diversidade de talentos e de dons pode ser vista até mesmo em irmãos gémeos. É fácil verificarmos que, por natureza, não somos todos iguais; ao invés, somos muito diferentes uns dos outros. Basta olharmos para a Natureza para concluirmos que ela está repleta de desigualdade e de diversidade. Por outro lado, é fácil verificar que há pessoas que desperdiçam as suas vidas e outras que cumprem as suas funções de forma excelente. Para os gregos, a desigualdade por natureza era um dado adquirido que importava respeitar. Em consequência, as pessoas excelentes eram mais nobres e dignas do que as que não eram excelentes. A ética, para os gregos, não era mais do que a disciplina que estudava a forma como as pessoas podiam florescer como pessoas e realizar, de forma excelente, as suas funções, actividades e competências.
Ramiro Marques in eses.pt