A ética da diferença

Vivemos uma época em que nossas certezas se desvanecem. A instabilidade dos valores e a sensação de perda de sentido é o que caracteriza, para muitos, a nossa condição pós-moderna. Neste mundo, o pluralismo tem se tornado um dos valores proeminentes. Isto significa que se aceita cada vez menos que as semelhanças se sobreponham às diferenças. A princípio, toda forma de vida é permitida e nenhuma concepção, lei ou ideologia pode tornar impermissível uma forma de vida particular. O universalismo como valor central da modernidade, vem sendo substituído pela aceitação da diferença. Argumenta-se que a condição pós-moderna tornaria possível a existência de indivíduos mais livres do que poderia garantir o ideário modernista. Como afirma Bauman, o que marca a pós-modernidade é a vontade de liberdade.
Perdemos a segurança, mas nossa vontade de liberdade parece ter se ampliado. Desse ponto de vista, uma das principais críticas feitas ao marxismo, actualmente, é, justamente, a sua precariedade em considerar o outro, em lidar com a alteridade, a diferença. Essa dificuldade estaria pressuposta na teoria marxista e evidente nas suas aplicações. Muito embora o marxismo se constituísse num projeto de emancipação da humanidade, este projecto traria no seu bojo a eliminação da diferença, o domínio sobre o outro. A filosofia da história de Marx foi criticada pelos pós-modernos (Heidegger, Foucault, Lyotard), mas também por marxistas (Benjamin, Marcuse, Adorno e Horkheimer) e ex-marxistas (Habermas). Vejamos algumas dessas críticas:
O discurso pós-moderno rejeita não apenas a teoria totalizante do marxismo, mas também a do hegelianismo, do cristianismo e de “qualquer outra filosofia da história baseada em noções de causalidade, em soluções totais que tudo englobam a respeito do destino humano”. Essa rejeição das noções de totalidade e das narrativas mestras significa a rejeição dos fundamentos, da ontologia que elas pressupõem. Como afirmar que a liberdade vem de uma única causa: económica, social ou política? Perguntam-se os pós-modernos.
Não podemos identificar as coordenadas originárias, respondem. Não há, portanto, um fio condutor capaz de dar inteligibilidade à história, nenhuma ligação intrínseca entre os acontecimentos, pois não há uma história única, mas inúmeras histórias particulares. É nesse sentido que se referem à ‘pós-história’ ou ‘dissolução da história. Ao invés da grande narrativa, há uma pluralidade de narrativas não passíveis de serem apreendidas sob uma única lógica, uma lei única.
Não há uma história única porque não há nenhum sujeito (individual ou colectivo, teórico ou prático) que a atravesse e que tenha uma essência a realizar no seu curso uma espécie de narrador omnisciente. Não é possível se observar, consequentemente, uma continuidade na história. Como afirmar que a história segue uma única linha? Vivemos acontecimentos e não podemos situar o que é o começo, o meio ou o fim da história, pois não há uma origem a qual tudo remonta.
Não há, também, um sentido. A história não tem um sentido porque não existe uma ordem subjacente a tudo o que acontece e não há uma finalidade única para a qual tudo deve tender. Desde que não existe nenhum sujeito na história, a história não tem um objectivo ainda que seja algo como a auto-realização da humanidade. A ideia de que a história tem um sentido e no seu curso garantirá a emancipação humana é uma ideia metafísica que não se sustenta empiricamente. As previsões de Marx quanto à superação da sociedade capitalista e às etapas do desenvolvimento da história têm se chocado com o que sabemos sobre a evolução das sociedades, afirma Loparic.
Esse finalismo levou muitas vezes a que se justificasse o presente em função do futuro. Por um lado promoveu uma moral ascética que exigia um adiamento, uma suspensão dos desejos imediatos em função do futuro. Era preciso sacrificar-se em função do projecto histórico. Essa moral tem parentesco estreito com a moral da religião revelada e sua promessa de compensação futura. Além disso, no plano coletivo, como afirma Leonardi, essa dimensão finalista e teleológica, que algumas formulações de Marx efectivamente possuem, influenciou na forma como ele considerou o “relacionamento entre as sociedades industrializadas e as pré-capitalistas, estas se sacrificando agora, sob o avanço inexorável da Modernidade, para que no futuro os povos desses países possam ser mais felizes”.
Leonardi observa que o preconceito hegeliano com relação às sociedades sem Estado influenciou profundamente Marx: “Quando fala dos demais continentes, no Manifesto, Marx está a tal ponto entusiasmado com o papel transformador da burguesia, na sua fase ascendente, que acaba estabelecendo uma via de mão única para a história da humanidade em seu conjunto, na qual a destruição de tudo o que fosse pré-moderno já se teria tornado inevitável após a Revolução Industrial, cabendo até ao proletariado levar adiante, na África, na Ásia, na Oceania e na América, essa tarefa iniciada pela burguesia européia”. A ideia de progresso, tão presente nas filosofias da história do século XIX, foi, segundo Leonardi, responsável por muitas deformidades, embora o domínio de um povo sobre outro fosse bem anterior à modernidade, já existindo em muitas tradições religiosas que viam que o inferior deveria se submeter ao superior.
Essa história única, que exclui as outras histórias, desconsidera as diferenças, arrastando tudo no seu tempo único, no seu movimento dialéctico. A dialéctica implica exactamente em negação e inclusão numa síntese superior. Para Marx, os povos ‘primitivos’ e as sociedades tradicionais teriam apenas um papel negativo no processo de mudanças na Modernidade. À essa história universal, os historiadores contrapõem hoje inúmeras histórias particulares: histórias de mulheres, negros, religiões, crianças, índios, distanciando-se de uma visão global do desenvolvimento da humanidade e aguçando a sensibilidade para o diferente, o particular.
Essa grande narrativa que conta a história da humanidade por etapas progressivas, pretende ser objectiva, científica. No entanto, os críticos de Marx encontram, por trás dessa suposta transparência, uma filosofia idealista e uma moral revelada. A filosofia da história de Marx, como, aliás, qualquer filosofia da história, constituiria, na verdade, uma teologia disfarçada e uma moral cristã. Essa grande narrativa que conta a história da humanidade desde os seus primórdios e antevê o seu fim é encarada como um grande mito de salvação. Na sua estrutura profunda, o marxismo estaria ancorado no postulado judaico-cristão da realização do Reino de Deus neste mundo: “as etapas da história humana, tal como projectada por Marx à luz do método dialéctico, são, poderíamos dizer, um grande mito da salvação da humanidade pela classe universal que é o proletariado, uma imagem de um dever-ser determinado pela revolta moral contra a injustiça social”.
Marx não apenas pretendia que a sua teoria fosse científica, mas nutria uma visão extremamente positiva com relação à ciência e à tecnologia. Cria que este desenvolvimento levaria à emancipação da humanidade. Com o aperfeiçoamento da técnica, aumentaria a produção, o que garantiria a igualdade das condições materiais (progresso também era um dos fulcros do positivismo). Marx incorporou o legado iluminista da técnica, da submissão da natureza ao controle do homem, sem se aperceber de seu perigo para a humanidade. A natureza é vista apenas como estando ao serviço do homem, que se realiza, se torna sujeito à medida que a transforma, que a faz seu objecto. Mas o progresso técnico, e no século XX isto se tornou evidente, foi se transformando na ruína da natureza. Essa ‘fé’ no progresso técnico também serviu para legitimar as acções sobre os povos menos industrializados. Segundo Leonardi, “a destruição e a morte foram consideradas inevitáveis por alguns filósofos que chegaram a dizer que a vida e a liberdade são temas secundários diante das facilidades revolucionárias proporcionadas ao mundo contemporâneo pela tecnologia industrial”.
Nessa história dialética, o mal é visto como um momento histórico mais ou menos necessário. Marx adotou, segundo Leonardi, em determinado ponto de suas reflexões a Filosofia do Mal necessário. Na dialética entre necessidade e liberdade, vencia quase sempre a necessidade (a economia) em detrimento das liberdades dos povos e das liberdades individuais. Essa noção de necessidade histórica, que Marx tenta comprovar dialeticamente, não tem, segundo Loparic, evidências empíricas, constituindo, na verdade, uma exigência moral. Uma moralidade que não comporta as diferenças.
Leda Dantas in ipv.pt