A Ética do pós-dever - por Carlos Gomes

A época contemporânea, também denominada pós-Moderna, trouxe-nos a partir da introdução do novo
paradigma do ‘homem individual e subjectivo, um novo conceito de ética – a ética dos novos tempos democráticos.
Gilles Lipovetsky, na sua obra ‘O Crepúsculo do Dever’, surgido já nos idos anos 90, mais concretamente em 1994, e talvez o meu livro favorito, introduz uma nova concepção ética. Esta nova concepção é a antítese da anterior, tradicionalista e de base religiosa. Agora, o homem reflecte o novo espírito do tempo, afinal uma nova ideologia cultural - a cultura do pós-Dever. Uma cultura do presente, hiperbólica do espectáculo e do divertimento.
Sinteticamente poder-se-á relembrar a ética tradicionalista, de cariz religiosa. Nesta, a cultura estava centrada na lógica sacrificial do Dever. Este dever, de fundo doutrinário, pois assentava no imperativo categórico de Deus, implicava uma finalidade escatológica – o reino do Céu e o sonho do Paraíso. No imperativo do Dever religioso, o ideal de sacrifício individual era a condição para a crença radiosa no futuro da história. Efectivamente, no Ocidente cristão e até á época das Luzes, Deus era o alfa e o ómega da moral, como afirmava Lipovetsky. A ética cristã era a doutrina que levava à prática da virtude com respeito á vontade e honra de Deus. A moral sujeitava-se, pois, á religião.
Hoje, em pleno século XXI, o paradigma ético transmudou-se. Deus deixa de ser o centro referencial da vida, dando lugar ao Homem. Não o homem abstracto das filosofias clássicas, mas o homem concreto, o homem de carne e osso, no sentido unamuniano. O indivíduo passa a ser o referencial essencial da cultura democrática!
Esta cultura assente no direito inviolável do ‘eu’ individual, exalta os desejos mais imediatos e prazenteiros. Os chamados ‘direitos subjectivos’, o ‘bem-estar’, a paixão do ego e a procura intimista e materialista da felicidade, tornaram-se a verdadeira sagração e laicização dos valores do pós-Dever. Daqui, a religião pode dizer-se, dá verdadeiramente lugr à ética. Uma ética para-além-do-dever absolutizado. Em vez do rigorismo e da cultura do sacrifício, vive-se a flexibilidade das convicções e da cultura fraca, minimal e pragmática.
A idade do pós-Dever é a idade do diálogo,do direito e da responsabilização, já não da obrigação e da sanção. O civismo moral é o substituto da ortodoxia e do dogmatismo.
Todavia, esta virtude sem Deus e esta ruptura com a ideologia sacralizada do Dever, não constitui uma ‘pera doce’. Pelo contrário, ela abre todas as portas à desorganização da consciência racional. A procura da felicidade conduz a uma lógica facilitista, em q ue o bem se reduz aos prazeres, à utilidade e ao interesse. Antes, os indivíduos viviam os valores do orgulho, da glória, do saber e do sucesso colectivos. Hoje, vive-se para um dever puramente individualista, aberto, descomprometido e igualitário. A sanção deixou de ser a expressão do pecado, para dar primazia aos valores da compreensão pela individualidade, tolerância, liberdade de expressão, etc. A moral dos novos tempos é absolutamente indolor e minimalista, plasmada numa civilização do bem-estar, psicologista e consumista.
Os factos libertaram os valores, a obrigação cedeu face á sedução, a informação tornou-se simples mercadoria, o dogma do mercado imperou sobre a pedagogia.
Carlos Gomes in filcarlos.com