Europa: uma comunidade imaginada?

As identidades colectivas, como as identidades individuais, emergem através de interacções e relações sociais. Como é evidente, as identidades colectivas não são um produto necessário de todas as interacções e relações sociais. Assim, as identidades colectivas pressupõem interacções e relações sociais específicas. Apenas através da identificação dessas especificidades é possível definir uma identidade colectiva. 
Um dos pré-requisitos fundamentais do processo de construção, reprodução e redefinição da identidade colectiva é a crença colectiva na existência de um Outro. O Outro emerge de interacções e relações sociais que despoletam um processo concomitante de diferenciação e construção simbólica da similaridade. Com efeito, a identidade colectiva requer um referente, isto é, a ideia de “nós” requer a ideia de “eles”. A identidade colectiva é inconcebível sem o Outro, sem a construção e reprodução contínua de fronteiras simbólicas. 
As interacções e relações sociais que permitem a definição da similaridade através da diferenciação tornam-se, como vimos, padronizadas ou institucionalizadas, caracterizando, assim, um grupo e a respectiva identidade. Os grupos adoptam mecanismos de reprodução desse padrão, de modo a transmiti-lo de geração em geração. Esses mecanismos, que podemos definir como processo de socialização, garantem a sobrevivência de uma identidade colectiva e, por conseguinte, de um grupo que, neste sentido, é uma comunidade de história – de passado e de presente – mas também de destino, na medida em que projecta um futuro comum. 
Estes são, precisamente, os processos que não conseguimos identificar no contexto europeu, concebido como um todo, apesar de alguns esforços de “engenharia social” com o intuito de os despoletar. Por outras palavras, não conseguimos detectar a existência ou emergência de uma identidade colectiva europeia. Contudo, surge aqui uma questão fundamental: em que medida necessita a Europa e, em particular, o processo de integração europeia, de um sentimento popular de pertença colectiva? 
(...) A doutrina da soberania popular, que triunfou com a Revolução Francesa, atribuiu ao “povo” a autoridade final, concebendo-o como o fulcro de toda a legitimidade política. Como comentámos, os “povos” que melhor se enquadravam na nova doutrina eram as comunidades culturais. À época, as comunidades culturais mais bem definidas eram as etnias ou, para aqueles que consideram que a origem das nações precede o século XIX, as nações. Desde esse momento, o princípio da nação como veículo de legitimação política adquiriu uma influência cada vez maior. Assim se compreendem os fenómenos, característicos dos últimos dois séculos, de politização das comunidades culturais e de nacionalização das comunidades políticas. O primeiro manifesta-se nas reivindicações separatistas ou autonómicas etnonacionais; o segundo refere-se aos projectos, perfilhados pelos Estados multinacionais, de homogeneização cultural de populações distintas em termos étnicos e nacionais (nation-building). Em ambos os casos, a nação justifica a comunidade política. Este período, também conhecido como era do nacionalismo, é caracterizado por uma associação entre lealdades culturais, como as lealdades nacionais, e lealdades políticas. Tudo isto foi reafirmado e confirmado após a II Grande Guerra com o triunfo (teórico) do princípio da autodeterminação, que estabelece que a autodeterminação é um direito da etnia e da nação.
Aparentemente, o nacionalismo sobrevive no século XXI. De acordo com muitos autores, a modernização e a globalização contribuíram decisivamente para o reforço do nacionalismo nas últimas décadas. 
Que consequências tem a persistência do nacionalismo para a integração europeia? A literatura dedicada à integração europeia estabelece frequentemente uma distinção analítica entre dimensão económica e dimensão política da integração europeia. À primeira reconhece-se um percurso de sucesso, à segunda um percurso de relativo fracasso (face à integração económica, evidentemente). Não é, de certo, por capricho que os principais actores do processo de integração europeia se têm preocupado, sobretudo desde a década de 70, com a questão do sentimento de pertença colectiva (...). Nem podemos deixar de considerar significativo o facto de se terem vindo a propor medidas inspiradas no modelo nacional. Estas preocupações manifestaram-se num período de crise, mas foram previstas desde o início, e, curiosamente, intensificam-se à medida que se investe no aprofundamento da integração política. O Tratado de Maastricht representou uma aposta forte nesse sentido, e há literatura em abundância que se refere ao período pós Maastricht como um período de “crise de legitimidade” da União Europeia. O que se seguirá à entrada em vigor do Tratado de Lisboa?
Os desafios que se colocam ao processo de integração europeia são, precisamente, os mesmos desafios que têm sido enfrentados pelos Estados multinacionais. Se a União Europeia pretender ser um centro de decisões políticas que afectam centenas de milhões de pessoas, então, e até de acordo com os princípios democráticos que defende, deverá suscitar a lealdade política dessas pessoas de forma a evitar “crises de legitimidade”. Porém, dada a associação moderna entre lealdade política e lealdade étnica/nacional, o sucesso da integração europeia e do “ideal europeu” depende: ou de um sentimento popular de pertença colectiva, isto é, de uma identidade colectiva que se equipare ou supere as identidades nacionais; ou da superação da era do nacionalismo, isto é, da dissociação entre lealdades políticas e lealdades étnicas/nacionais; ou, mesmo, do dobre de finados das nações e da identidade nacional, sendo este o cenário menos provável. Caso contrário, a integração europeia deparar-se-á inevitavelmente com problemas que constituirão os seus limites, pois o nacionalismo está mais do lado da desintegração política do que da integração política. Tentar definir esses limites com precisão é um exercício puramente especulativo. Todavia, nas últimas duas décadas temos testemunhado momentos de tensão que requerem uma análise cautelosa. Uma ilustração do que poderá constituir o limite de um processo de integração política que carece de uma identidade colectiva, é-nos providenciada por Armingeon: “enquanto a União Europeia não exige dos seus cidadãos um comportamento de solidariedade amplo e profundo, ou um comportamento forte e consistente por parte dos seus povos, uma identidade colectiva completamente desenvolvida não é, em princípio, necessária. Isto mudaria drasticamente assim que a União começasse a cobrar impostos elevados ou a redistribuir recursos fundamentais”.
Por agora, a Europa ainda não é para os europeus uma comunidade imaginada similar à das nações, ou dos verdadeiros Estados-nação, em que se reconhecem.

Riccardo Averini Barata in repositorio.ul.pt/