Kant, Nietzsche e a União Europeia

Por norma, os intelectuais contemporâneos do ocidente gostam da União Europeia e há razões fortes para isso. Com o insucesso do marxismo económico (que foi substituído pelo sucesso do freudo-marxismo) e com o antagonismo compulsivo ao nacionalismo que decorreu da infelicidade das 2 guerras mundiais, o liberalismo foi a ideologia vencedora e hegemónica do pós guerra. Este liberalismo, claro, coloca a tónica no valor da igualdade como valor essencial para suportar a liberdade individual, daí ser apelidado de liberalismo social ou igualitário, sendo o liberalismo clássico/libertário apenas uma voz minoritária e crítica do que devia ser o liberalismo (questão que não vou agora discutir). Assim, quem conhece os meandros universitários e intelectuais sabe que a maioria se revê no paradigma liberal (normalmente de carácter igualitário) e mesmo os simpatizantes do marxismo já se sentem confortáveis no liberalismo igualitário, visto que este absorve muitas das ideias radicais de Marx.
A União Europeia é um projecto feito neste espírito liberal individualista, onde os colectivos identitários que denominamos de nações devem ser diluídos em troca de uma “pacífica” colecção de indivíduos sob o mesmo Estado federal. Esta é uma visão influenciada pela moralidade universal Kantiana, ou seja, pelo imperativo categórico de que devemos tratar igualmente todos os indivíduos (independentemente da origem) como se quiséssemos que tal tratamento se tornasse uma norma universal. A paz eterna de Kant baseia-se nesta moralidade, que é a base filosófica do pacifismo da União Europeia. Por outras palavras, só acabando com o particularismo filosófico (i.e. o “nós” vs “eles” identitário) será possível atingir o almejado modelo Eurocrata. Ao optar pelo universalismo, a União Europeia almeja ser, como diria Hans-Hermann Hoppe, apenas um passo para um futuro governo mundial. Assim, esta União Europeia não é “de facto” Europeia porque não tenciona representar Europeus; tenciona sim representar os valores da universalidade Kantiana, a humanidade, o liberalismo e os direitos do Homem promovidos pela revolução francesa.
Dado o hegemónico clima intelectual igualitário, individualista e universalista da actualidade ocidental, não é difícil de perceber o porquê de existir tanta simpatia pela União Europeia entre intelectuais; ao ponto de alguns chegarem a trocar o antigo “socialismo ou morte” pelo novo “federalismo europeu ou morte”.
Porém, se este modelo de União Europeia tem por base a moralidade Kantiana, há entre os colossos da filosofia ocidental outras ideias de “União” Europeia que seriam anátema para os actuais euro-federalistas. Estou a referir-me ao Pan-europeísmo de Nietzsche.
Apesar de o seu nome ter sido usado com esse fim, Nietzsche era contra o nacionalismo de pequena escala e escreveu ostensivamente contra o nacionalismo alemão. Ele considerava que os nacionalismos intra-europeus destruíam a vitalidade europeia e como tal defendia o pan-europeísmo. Era assim um europeísta convicto, um patriota europeu, um “civilizacionista” ocidental que defendeu intransigentemente o conceito de “bom europeu”.
No entanto, o que separa a UE de Nietzsche da actual UE Kantiana é a moralidade subjacente. Toda a filosofia Nietzscheana está baseada na desigualdade natural entre os homens; e “afirmar a vida” significa abraçar essa desigualdade através uma moralidade positiva e aceitar o desafio da superação humana. Isto, claro, implica a rejeição absoluta de valores igualitários como os “direitos do Homem”, a democracia liberal, tal como as quotas niveladoras ou a redistribuição compulsiva, entre outros conceitos centrais para a actual UE. Para ele, todas estas expressões são apenas variações da mesma moralidade de escravo; onde os homens fisiologicamente e culturalmente com mais valor são puxados para a mediocridade pelas massas, provocando o declínio progressivo da civilização ocidental.
Segundo este pensador alemão, qualquer grande civilização ou império só se sustenta se o governo for de carácter aristocrático e resistir a tentações igualitárias como o liberalismo, socialismo ou a democracia; isto implica uma vontade de poder e autoridade por parte dos homens de valor (“aristos”), assim como o respeito pela tradição hierárquica geracional.
O próprio objectivo desta União Europeia teria de representar a “vontade de poder” do “Homem Europeu”, presente na apreciação que Nietzsche tinha de Napoleão quando escreveu que o líder francês era uma força de génio com capacidade de levar a Europa a uma união política e económica que poderia “dominar o mundo”.
Poucas dúvidas restam que entre estas 2 visões de União Europeia foi a Kantiana que venceu. Porém, ao abraçar o universalismo como credo político, o actual projecto federalista desafiou a identidade europeia e o seu particularismo; por outras palavras, desafiou a ideia tradicionalista de sangue e civilização. Com isto, conseguiu diminuir a força e o potencial de acção colectiva interno das nações europeias. Contudo, se o filósofo Roger Scruton estiver correcto (como eu penso que está) quando escreve que todas as sociedades políticas dependem do sentimento de pertença, a actual UE de carácter universalista e individualista é um projecto falhado à partida.
No século XIX, Nietzsche previu que antes de a Europa estar verdadeiramente unida, iríamos passar por uma fase intensa de guerras, democratização, igualitarismo e crise moral, o que de facto se passou e se está a passar. Ironicamente, com ou sem intenção, esta União Europeia Kantiana arrisca-se a unir os europeus, que nunca estariam tão próximos como começam a estar perante este “ataque” às suas tradições e identidades; em última instância, poderão inclusive chegar ao ponto (impensável em condições normais) de se identificarem como Europeus contra este inimigo comum. Se tal acontecer, o actual universalismo Kantiano será provavelmente substituído por um europeísmo mais Nietzscheano e veremos uma “vontade de poder” assumida.
Nessa altura, as ideias hegemónicas serão outras… e os intelectuais médios também.
Filipe Faria in oinsurgente.org