Relativizar a cultura europeia - por Eduardo Lourenço

Sem levar o exercício da auto-negação a extremos que fazem as delícias e até a especificidade de um comportamento cultural bem europeu, a simples constatação de que existe essa cultura europeia, tanto no passado, como no presente, revela ou suscita um certo consenso e mesmo um consenso certo. Há uma cultura europeia, como há uma cultura africana, uma cultura americana, uma cultura asiática ou uma multiplicidade de culturas que a si mesmas se consideram como distintas das demais.
Recentemente, Samuel Huntington, três séculos depois de Montesquieu e quatro depois de Montaigne, afirma que a realidade cultural do planeta é a de um arquipélago de culturas e, através desta constatação fáctica, de carácter etnológico e etnocêntrico, deseja despir o conceito mesmo de cultura de qualquer carácter de universalidade em favor de uma "antologia" do diferente. Não deixa de ser interessante a nossa questão - que tomada à letra e levada às suas últimas consequências a converteria em pseudo-questão - esta apologia do relativismo cultural. Ela faz parte de um reflexo e de um dispositivo teórico, na aparência inocente, na realidade destinado precisamente - quando esse discurso é o discurso dominante de uma cultura dominante - a des-legitimar não a ideia de uma cultura europeia, mas aquilo que, estruturalmente, que mais não fosse pela própria lógica do relativismo cultural, é - ou foi - a sua pretensão: a de se definir, em todos os domínios, desde o da filosofia, ao da ética ou da estética, como intencionalmente universal. Este tipo de atitude, assumidamente teorética, mesmo se intimamente suscitada por imperativos éticos distinguir o justo do injusto, em função de critérios racionais, de maneira a fundar e legitimar uma ordem humana digna desse nome, é costume - era costume - atribuí-lo à Grécia. Ou a alguns gregos que assim inventaram para outros e para nós precisamente a Primeira figura da Europa. Quer dizer, de uma cultura europeia que se perpetuou durante séculos no nosso imaginário cultural, como a de uma herança cujo ponto de honra e vocação era a de cultivar essa atitude e esse tipo de pensamento como lugar onde o pensável se torna objecto de questionamento, isto é, a Filosofia. Ou melhor dito, o filosofar.
Pela sua própria natureza, este questionamento radical, não apenas acerca da natureza ou das causas das coisas, mas da realidade enquanto tal, por mais gregos (e europeus arquétipos) que tenham sido, se, hipoteticamente pode definir qualquer coisa de típico do imaginário europeu, não pode, nem exige, antes recusa, que seja grego ou europeu, no sentido histórico ou cultural o sujeito dele. Pode ser um dado empírico, não é qualquer coisa que nos possa definir como europeus. Se pensar é pensar grego como repete Heidegger este "pensar grego" não é pensar dos gregos e consequentemente de europeus no sentido etnológico ou mesmo cultural. É o pensar o tipo de pensamento que certos gregos os filósofos - pensaram, que inventa o grego como figura do nosso imaginário e inventa o europeu como a repetição dessa essência grega do pensamento. Para a apreensão de um imaginário que definiria o europeu e a Europa hoje esta deportação ou passagem nas paragens da origem do que foi a Europa, parecerá pleonástica a uns - pois que mais mítico do que este reconhecimento das nossas raízes gregas.
Pessoa na abertura da Mensagem, evocando Portugal como rosto da Europa, não rediz "os olhos gregos lembrando"- e inadequada outra, tanto somos hoje outros, tanto o nosso imaginário de hoje será fatalmente diferente. Mas é uma ilusão. Uma vez constituída uma civilização, uma cultura, não só reformula sem cessar aquilo que a funda, mas nessa reformulação se aprofunda. A História da cultura europeia, de Cícero a S. Agostinho, de S. Anselmo a S. Tomás de Aquino, de Erasmo a Lutero, de Winckelman a Göethe, de Hõlderlin a Nietzsche e Heidegger, não é outra coisa, na ordem dos princípios definidos pela ambição metafísica, que a História da Grécia sem cessar revisitada para a tomar compatível com o outro hemisfério - o hemisfério outro - do imaginário cultural europeu, o do Cristianismo. Este disputa à Filosofia o privilégio de dizer o verdadeiro e o universal na ordem do pensamento em nome de uma revelação fundada na universalidade na ordem da comunidade, de que nós somos o outro do outro.
À parte o facto de que estas duas fontes do imaginário europeu comunicam entre si - e historicamente comunicaram - pela recusa radical do etnocentrismo, entrando em contradição consigo mesmo quando aconteceu explicitarem-se nessa perspectiva, o que as caracteriza e contribui para dar à cultura europeia o seu perfil particular, foi o facto de se terem assumido como o lugar onde a essência da Verdade - na ordem do conceito ou da revelação - é discutida.
Eduardo Lourenço in eselx.ipl.pt