Ser e devir

O surgimento da filosofia, na Grécia do século VI a. C., assinala uma nova forma de o homem estar no mundo. Essa nova postura vem a ser o fundamento originário de todo o pensamento filosófico e, consequentemente, do pensamento científico, pois como se verifica com Platão e Aristóteles, a episteme, a ciência, está no centro da indagação filosófica. É certo que a ciência moderna está longe de ser a episteme pensada por Platão e Aristóteles, cuja atenção se virava para o Todo e para o ser enquanto ser, enquanto o conhecimento científico moderno foi progressivamente se voltando para o ente, tendo em vista o projecto humano de domínio e transformação da natureza pela técnica. Daí que a actividade científica tenha fragmentado e multi-espartilhado o conhecimento, acabando por se tornar na tecnociência atual. Porém, os princípios epistemológicos por eles fundados – e que fizeram prevalecer a filosofia sobre a sofistica – constituem até à contemporaneidade o solo intransponível em que assenta toda a ciência. Pense-se na superação platónica da antítese entre o eleatismo e a tradição heraclítica, que resulta na síntese entre experiência e razão na determinação (no conhecimento) daquilo que é (o ente); e nos princípios lógicos aristotélicos de «não-contradição» e de «terceiro excluído».
Com os primeiros filósofos inicia-se o esforço de racionalidade, o apelo ao logos, à razão, e estabelece-se a ruptura do pensamento filosófico com a forma de pensar até então: o pensamento mitológico que remetia as explicações sobre o mundo para o muthos, o mito, a lenda, potenciando os cultos e os rituais de carácter religioso. O interesse pelo saber (a filosofia) dos primeiros filósofos é dessacralizado, está liberto do pensamento circular que reduz todos os fenómenos e toda a experiência a volições de entidades sobrenaturais, os theoi, deuses, que imperam sobre o mundo, como narravam Homero e Hesíodo. Quando os Milésios lançam o olhar e o pensamento para a physis, para a natureza, não encontram um conjunto arbitrário de fenómenos incognoscíveis, como faria sentido que acontecesse se a experiência do homem no mundo fosse remissível para aquilo que é da ordem do mito e da fábula. Encontram sim a regularidade de certos fenómenos, um Kosmos.
Na origem do pensamento filosófico estão duas concepções distintas sobre o carácter da realidade e que correspondem aos conceitos de Ser e Devir. Para os físicos jónios nada existe fora da physis, natureza, crescimento. A physis é o Todo e o Todo é um devir: um mundo em que todas as coisas estão sujeitas à geração e à destruição, ao movimento e à mudança. Para os eleatas só existe aquilo que «é», o ser. O ser é concebido em sentido absoluto: é uno, eterno e imóvel, e esse é, para os eleatas, o verdadeiro carácter da realidade.
Entre as duas teorias existe, não tanto uma antítese total, como se afirma em algumas das exposições descritivas da História da Filosofia, mas sim uma contraposição entre uma teoria do devir, cuja principal ideia é a de que o Kosmos, o mundo ordenado, está desde sempre num estado de perpétua mudança, e uma teoria do ser, cuja principal ideia é a do eternamente fixo e imutável.
O entendimento dessa contraposição é fundamental para a compreensão da filosofia pré-socrática e da História da Filosofia. A filosofia pré-socrática pós-parmenídea é marcada por um esforço de síntese dessas duas teorias, como se verifica nas filosofias de Empédocles, Anaxágoras e dos Atomistas. E, o dualismo platónico: mundo sensível/mundo inteligível é fundado nessa contraposição que está na origem do pensamento filosófico.
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A originalidade dos físicos consistiu em, nas suas demandas por uma explicação para a origem do mundo, terem colocado, junto da observação empírica e da representação intuitiva a representação abstracta, a razão. Das suas observações do mundo do devir os físicos extraíram a ideia de eternidade: a physis como «princípio» e «elemento» é eterna, e a ideia de unidade: o múltiplo é o desdobramento do «princípio» e «elemento», tal é a representação abstracta contida no pensamento: o uno é múltiplo.
Os eleatas, que estavam a par dessa forma de pensar, chegaram aonde os físicos chegaram e a partir desse ponto distinguiram-se deles. Enquanto na teoria dos físicos estão conciliadas a representação intuitiva da natureza e a representação abstracta, os eleatas tomaram por verdadeira e absoluta a realidade do pensamento que concebe o uno e o eterno e atribuíram-lhe o ser. Daí que para Parménides: “O mesmo são o ser e o pensar”. Assim produziram a teoria do Ser-Uno-Imóvel.
O decurso histórico-filosófico posterior a Parménides, pelo menos até Platão e Aristóteles, é marcado pelo esforço de síntese das duas filosofias. Se bem que com Empédocles, Anaxágoras e os Atomistas prevaleça a filosofia dos físicos e se retomem as questões do movimento, do «principio» e «elemento» e a relação uno/múltiplo. Já com Platão e Aristóteles a questão da episteme vai obrigar a um centramento do problema no lado da teoria do ser. Com efeito, para Platão não pode haver ciência daquilo que está em perpétua mudança. E para Aristóteles os princípios lógicos de «não-contradição» e de «terceiro excluído» são inconciliáveis com a doutrina heraclítica do fluxismo universal, patenteada no fragmento: “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não-somos”.
Helder Renato Lôro Nunes in Devir e Ser na Origem do Pensamento Filosófico, pg 5/6 e 89/90