A urgência da Literatura - por Vasco Graça Moura

Não me canso de repetir e de sublinhar uma passagem de Vítor Aguiar e Silva num documento de trabalho sobre o tema das humanidades. Se já o fiz neste lugar, não peço desculpa ao leitor pela repetição, pois entendo que continuo a prestar--lhe um bom serviço.
Salientando o seu parentesco conceptual e epistemológico com as áreas das "ciências humanas", "ciências sociais", "ciências do espírito" "ciências da cultura" e "ciências sociais", embora sem perfeita equivalência semântica, dados os contextos e as tradições culturais em que se formaram, Aguiar e Silva diz que o termo "humanidades" é utilizado como equivalente moderno dos sintagmas studia humanitatis e litterae humaniores, de uso plurissecular, designando nomeadamente os seguintes campos disciplinares: línguas e literaturas clássicas; línguas e literaturas modernas; filologia; linguística; retórica; poética, história e crítica literárias e literatura comparada; filosofia, desde a filosofia moral à filosofia política, e história, em especial a história da arte, a história das ideias e a história da cultura.
A opção pelo termo "Humanidades" justifica-se, entretanto, "porque o conceito de humanidades tem uma densidade memorial e histórica que é uma herança irrenunciável, porque goza de significativa fortuna e de prestígio institucional nos meios académicos de muitos países (...), e porque sem denegar a procura e a construção de um conhecimento caracterizado pela racionalidade científica, não denota o projecto voluntarista de se subordinar, algumas vezes apenas nominalistamente, a um modelo de cientificidade", aspectos estes desenvolvidos no seu livro As Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua Portuguesa (Almedina, 2010).
Acontece que esta matéria foi, de algum modo, abordada no encontro do Centro Cultural de Belém do último fim de semana, "A Urgência da Literatura: Presente e Futuro", por proposta de António Carlos Cortez, a que Helena Buescu se associou e contou com a presença de figuras eminentes do nosso panorama cultural. Tratava--se de pensar, como pude ler numa fórmula feliz, sobre o lugar da literatura não tanto no nosso passado (embora saibamos qual o papel que ela teve na construção desse passado), mas sobretudo do nosso presente e do nosso futuro. O mais interessante é que, além do DN, que vem prestando especial atenção a estas iniciativas, também o Público de domingo publicava um belo e quase borgesiano artigo de José Pacheco Pereira sobre a importância do livro, mesmo quando jaz esquecido e encafuado numa prateleira onde ninguém o procura ou dá por ele (só quem conhece a sua biblioteca compreenderá integralmente o que pretende dizer e se aproxima da ideia de livro - bíblia - de Ernst Robert Curtius), e uma longa entrevista com David Jensen, professor norte-americano que, embora centrado na necessidade de aprendizagem da filosofia, acaba por dizer o mesmo quanto às humanidades e quanto às preferências de escolha das entidades patronais a diplomados que com elas tenham tido um contacto proficiente. Porque será? Hoje temos todos a consciência de que a literatura é um instrumento do conhecimento e corresponde a um meio de funcionamento ao nível da sociedade que vai muito mais longe. Penso que seria essencial que a escola portuguesa, tanto ao nível de docentes como de discentes, tivesse a capacidade de conjugar estas perspectivas com o território, tantas vezes esquecido, das humanidades.
Como também li num depoimento, salvo erro de Helena Buescu, este colóquio pretende apontar para o futuro. Aos que falam da crise das humanidades e da crise da literatura, há também que saber dizer que sem crise (sem pensamento crítico) não existe qualquer futuro reflexivo, seja em que domínio do conhecimento for. A literatura é um dos mais densos lugares em que essa reflexão e essa compreensão se constroem. A literatura é algo que nos define como cidadãos reflexivos de uma cultura historicamente situada, com um património que hoje, cada vez mais, devemos aprender a valorizar, a praticar e a transformar. É nessa conjugação que reside a eminente dignidade da literatura.
Espero que este colóquio, que assim veio ao encontro de um projecto que de há muito alimentámos, abra pistas em todas as direcções para muitos dos problemas cujo tratamento tem feito o êxito do ciclo de humanidades que o Centro Cultural de Belém tem procurado construir.
Vasco Graça Moura in dn.pt
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico