Cultura da Alteridade - Sartre

O pensamento de Sartre, enquanto cultura da alteridade, promoveu uma "outra" cultura e impôs-se como um sistema autónomo e totalizador do mundo e da realidade humana, não deixando ninguém indiferente. Olhar para Sartre é, antes de mais, reflectir sobre a crise contemporânea herdada do século XIX. Antes dessa viragem, o homem encontrava-se sustentado por uma rede de certezas polarizadas na ciência, de onde irradiava um universalizado optimismo. O que se seguiu foi um verdadeiro traumatismo como jamais a Historia conheceu. A mudança não se restringiu ao domínio das ideias, mas atingiu todo o viver do homem. Sartre, na derrocada dos valores tradicionais que se desmoronaram no cataclismo da mudança, ergue o valor do próprio homem, através do qual precisamente há valores; ao primado do indivíduo opõe, por alargamento, o primado do homem: o que importa não é o que, em nós, nos separa, mas aquilo que nos une. Sartre sempre estabeleceu o projecto de uma antropologia procurando apreender as estruturas concretas do existente e a sua deiscência originária. Devido à nossa "condição humana", temos de superar as leis da natureza ou, pelo menos, de assumi-las responsavelmente. Se Sartre não foi a consciência moral do homem contemporâneo, foi pelo menos uma das consciências possíveis, alguém que reagiu sempre a todas as grandes questões da nossa época, alguém que esteve sempre atento, com lucidez e paixão, a tudo quanto dizia respeito à existência humana como quem não acreditava que o homem fosse uma "paixão inútil", embora concebendo-o como totalidade sempre em vias de destotalização; foi a incarnação mais estimulante das contradições, das ansiedades, mas também das procuras generosas que atravessaram o nosso tempo: enquanto, à sua volta, tudo parecia ruir, Sartre, longe de se submeter ao desespero, enfrentou lucidamente as exigências da construção de um humanismo autêntico; ostenta, por isso, a estatura e a verticalidade dos grandes (re)formadores do pensamento. Sartre estabelece uma reflexão profunda em torno do homem; o desconcertante da sua doutrina evidencia (não fora essa a missão da Filosofia) a existência de múltiplos caminhos para a Verdade, enquanto esta é uma "totalização que incessantemente se totaliza", enquanto é "dom que nos remete ao infinito" e, simultaneamente, "um absoluto e um indeterminado".
Os seus próprios enganos (e, até, alguns erros) não foram inúteis; paradoxalmente, a sua convicção do carácter contingente e absurdo da existência (tema nuclear do seu pensamento) cede lugar à convicção da esperança; esperança talvez mítica e mesmo mística que consuma o advento do Reino dos Céus sobre a Terra, através da História. Por isso, Sartre, nunca deixou de ser um intelectual apaixonado, assumindo a sua vocação com extraordinária intensidade: toda a realidade pode e deve ser pensada; a descoberta da fenomenologia foi, para ele, a divina surpresa que lhe possibilitou a transcrição do concreto sob a forma de ideias, embora com riscos, devido à sujeição absoluta àquele método; mas o seu compromisso maior foi o da recusa de todos os dogmatismos, embora apoiado no sentir de uma sociedade que perdeu todas as referências da Transcendência.
Entregando-se generosamente à contestação de uma sociedade desumanizada, na busca de novos "caminhos de liberdade", nunca renunciou à possibilidade, que era uma esperança, da conversão de todos os homens no seu conjunto, tendo percebido que, se a justiça passava pela revolução, também a revolução fundava a injustiça. O seu compromisso foi o protótipo do compromisso de toda uma geração de intelectuais. O facto de a sua trajectória ter ficado inacabada, em quase todas as suas direcções, confere-lhe uma abertura e uma força de apelo que nos tornou, de algum modo, susceptíveis de participação no seu pensamento, para o continuar, ou para o contradizer.
Porque a verdade não nasceu primeiro, mas faz-se e devém, Sartre nunca aderiu ao definitivo; por isso os seus compromissos são autênticos casos de razão, sempre revisíveis; a sua filosofia, marcada pelo espírito de seriedade, mas atormentada pela tragédia metafísica, é uma atitude que, radicada na ambivalência ontológica, sempre busca a superação; todavia, no conjunto do seu desenvolvimento, não há rupturas na continuidade; a evolução total do desenvolvimento filosófico de Sartre reveste-se de uma estrutura dialéctica onde, por vezes, as posições são profundamente modificadas. Por isso, Sartre tem de ser visto no seu conjunto evolutivo. A publicação dos escritos póstumos e, em especial, o conhecimento do seu pensamento no domínio da moral dialéctica, exige uma re-leitura da sua obra e uma compreensão renovada da questão do sentido e do valor. Na verdade os escritos sobre a moral (nomeadamente as Notas da Conferência de Roma de 1964 e as Conferências da Universidade de Cornell), que Sartre até ao fim da sua vida deixou inéditos, sobretudo os escritos da última fase, rompem com a ambiguidade da moral, apontam decisivamente para o normativo, admitem a realidade de uma condição humana já vislumbrada em L´Existentialisme est un Humanisme, numa tentativa final de superação do absurdo da existência pela possibilidade de abertura à esperança. Mas o ateísmo mantém-se; daí a exigência da dialéctica para a recusa da contradição neste itinerário para a esperança a percorrer pela existência humana.
Podemos criticar Sartre, podemos traçar uma lista dos seus erros, podemos detestá-lo ou amá-lo. Uma coisa que não podemos fazer é ignorar a sua importância. Pertence ao estofo de que o século XX foi feito. Está inscrito na trama do nosso tempo, ligado às suas ideias e aos seus compromissos.
Inteligente e prodigiosamente dotado, consagrou o primado do político sobre o estético. Foi um "maître à penser", em toda a acepção do termo. Um gigante da escrita e do pensamento.
Foi a consciência do seu tempo. Odiado ou admirado, vilipendiado ou respeitado, Sartre tornou-se ponto de referência para várias gerações. Sem dúvida, porque resistiu sempre às tentações da realpolitik e porque soube, em todas as circunstâncias, manter a predominância da moral.
Cassiano Reimão in ucp.pt