O dinheiro e os descartados pelo despedimento

Ninguém me diria, creio, que chegaria a esta idade - e haveria de gostar de ouvir um Papa falar. É um falar que diz coisas, o deste Francisco, o falar de um filósofo que pensa o mundo, que se amargura com o que vê e que põe os dedos nas feridas, expondo melhor as chagas do nosso quotidiano. Filósofo, sim, se bem que o outro, o antecessor, o resignatário, tenha ficado com o capelo e a borla de académico do pensamento.
Mas não falava comigo, isto é, não me dizia nada de que eu tirasse o proveito do deslumbramento. Francisco diz o que eu já sei, é verdade. Mas eu não sabia que um Papa era capaz de dizer tais coisas com a serenidade de quem levanta a mão sobre a procela - e o mar fica a ouvir, feito lago. Usa linguagem simples, fala a língua dos simples - por isso é filósofo, e dos bons! Sempre gostei mais de Platão do que de Heidegger - e nunca vi aquele envolvido, como este, nas trapalhadas do palavreado tão erudito, tão complexo, tão arrevesado, que o homem acabou vestido com a farda mais vergonhosa de um simpatizante nazi: tinha tropeçado nos seus próprios pensamentos liofilizados e sem gota de sangue ou de carne que não fosse dos outros.
Ainda comparando Papas, o resignatário sabia muito de ortodoxias: quando Bento XVI era ainda grilo falante de João Paulo II, fez este varrer para o silêncio uns cento e quarenta pensadores católicos (olá, Leonardo Boff e tantos mais!) que não punham as vírgulas e os travessões onde mandava a cartilha. Curiosamente, quando foi ele a mandar, já não fez sangueira ideológica, ou porque já tinha exaurido o seu purgatório privado de anatemizados ou porque, sendo Papa, pôde finalmente ser filósofo da prática, mexer na vida vivida.
(Olá jornalistas vaticanescos colocados onde estão pela graça e empenho das hierarquias nacionais da Santa Madre: esta foi a contradição sobre a qual nunca vi Ratzinger ser interpelado. Será que ainda vão a tempo - ou não dá jeito e mais vale que Wojtyla seja emprateleirado na História como o único intolerante doutrinário?)
Bem, voltemos à vida e ao que interessa para a vida: no caso, Francisco. Ao ouvi-lo, ficamos entre a perplexidade e o alívio. Será ele um infiltrado do invisível esquerdismo internacional, fintando todas as malhas de vigilância doutrinária do Vaticano e, portanto, condenado a uma redentora cicuta que reponha o que sempre assim foi e sempre assim terá de ser? Ou os sonhos de quem toda a vida se bateu por uma sociedade mais solidária e com outros valores de dignificação não brotavam de uma recalcada inveja reviralhista e continham propostas de futuro que podem ser proferidas sem temor pelo líder da maior e mais interveniente organização humana que é a Igreja Católica?
Não creio que Francisco tenha andado a queimar as pestanas a ler as mais de oitocentas páginas de O Capital do Século XXI, de Thomas Picketty.
(Consta que Vítor Gaspar mandou vir de Fátima um camião TIR de velinhas meio ardidas por velhinhas meio morridas em transes de fé, para poder ler, em soturnidade lúgubre e noturna, tão ímpia obra da heterodoxia do pensamento tergiversante, tarefa que incensará o paulatinofalante Gaspar na posição de lídimo Torquemada do ultraliberalismo...) Mais valia que Picketty tivesse ouvido falar Francisco, quando ele deu a melhor e mais percetível definição desta sociedade de mercado (que não tão-somente economia de mercado) em que naufragamos: "o sistema do descartável".
Tudo se descarta, nada se integra, exceto o que dê lucro - e enquanto o dá. Descartam-se as crianças, os velhos, os doentes, os desempregados e os empregados na próxima volta da tômbola. A frase comum e um pouco sem sentido "só fazem falta os que cá estão" é levada aos limites da ousadia: "Nem os que cá estão fazem falta. É só fazer as contas."
(...) 
E, enquanto o Papa Francisco denuncia serenamente a sociedade dos descartáveis, batem no peito, cheios de fé, governantes que arrastam a Senhora de Fátima como detergente para limpar a nossa costa de marés negras, ou aparece a incansável Senhora a soprar aos sonhos da buliçosa e vidente mulher do coiso, para explicar o milagre não sei de que resgate - e incorporam nas contas do Estado os dinheiros da prostituição, da corrupção, da economia invisível. Dinheiro é dinheiro, não tem cor nem currículo: é o deus dinheiro - assim o disse Francisco. Tudo será posto ao seu serviço e homenagem.
Se qualquer forma de ganhar dinheiro passa a ser legitimada por estes tão lídimos representantes europeus da civilização cristã (o Papa é argentino, o que é que ele percebe disto?), nada impede que o devoto ministro Mota do Ódio ao Pobre, assine um despacho - e este assunto é já discutido na Alemanha da angelical Merkl, pelo que deve estar a chegar aí - no sentido de que, sendo a prostituição legalizada, os centros de emprego poderão compelir os descartados - de ambos os sexos, pois então!, nada de discriminação - a que se apresentem em tal ou tal bordel, sob pena de, à terceira nega, adeus subsídio!
Ao Papa Francisco só lhe falta um passo para a imortalização entre os vivos: que passe uma indulgência plenária a quem faça uso de um bom chicote no templo ao deus dinheiro. Isso é que era!
Óscar Mascarenhas in  dn.pt