O gosto - por Manuela Morais

O juízo estético, de um modo geral, indica um juízo emitido com base naquilo que se sente e que não é susceptível de ser inteiramente motivado por uma explicação lógica. Este juízo é interpretado em termos de gosto (gustus) e designa em sentido figurado uma faculdade subjectiva, inata ou perfectível, de julgar as qualidades de uma obra de arte e, por outro lado, as tendências preferenciais de uma época, grupo ou pessoa em matéria de arte. Assim, o gosto enquanto sentido humano é transposto para o mundo valorativo das obras de arte e da natureza, visto que o ser humano também julga ou saboreia um espectáculo da natureza ou um objecto artístico pelo prazer ou desprazer que em si suscita. O início da utilização da palavra gosto (gustus) não pode ser rigorosamente determinado, contudo considera-se que é por volta dos meados do século XVII, primeiro em Itália e em Espanha, depois em França e em Inglaterra e, mais tardiamente, na Alemanha, que o termo adquire pertinência para designar uma faculdade nova, a capacidade de discernir o belo do feio e de apreender pelo sentimento (aisthêsis) imediato as regras dessa dicotomia. Deste modo, o nascimento da estética como disciplina filosófica enlaça-se à mutação radical do belo em gosto. Consequentemente, com o conceito de gosto, o belo passa a radicar na subjectividade humana que, no limite, se define pelo prazer que proporciona, pelas sensações ou sentimentos que suscita no homem encarnado. Apesar das reflexões de Borinski que pareceram descobrir em certos autores da Antiguidade um uso mais ou menos alargado da palavra gustus, trata-se, pela sua singularidade, de uma criação do Homem Moderno e não do Homem da Antiguidade ou da Idade Média, visto que estes últimos consideravam a arte como um assunto de apreciação ética e técnica . Por exemplo, não se consegue imaginar Platão ou Aristóteles a julgar em termos de gosto as obras de Homero ou de Sófocles. Não obstante, já na Antiguidade é possível encontrar a convicção de que a capacidade de julgar de maneira “conveniente” e “adequada” a cada caso particular não é só motivada por capacidades lógicas, abstractas e formalizáveis. Neste sentido, Platão distingue as várias “artes” segundo o grau de aproximação ou de distanciação relativamente a um determinado saber. Assim, a arte legislativa, a ginástica e outras, são “artes” susceptíveis de juízos racionalmente justificáveis, enquanto a sofística, a culinária, etc. são relegadas para o domínio do empírico, porque incapazes de dar razão de si mesmas.
Aristóteles , por seu lado, distingue no livro VI da Ética a Nicómaco os conceitos de sophia e de techne. O primeiro diz respeito a tudo aquilo que” não pode ser diferente daquilo que é”, a saber, a ciência; o segundo diz respeito à produção das coisas contingentes segundo um determinado saber e capacidade, ou seja, a arte. Separa estas noções de outras como phrónesis ou sabedoria, synesis ou sensatez e gnome ou capacidade de discernimento que são verdades da deliberação enlaçadas às coisas particulares. Da deliberação não há ciência, porque não se procura aquilo que já se sabe. Deste modo, a sabedoria contrapõe-se ao intelecto, pois deriva da deliberação da qual não há ciência, mas sensação.
Cícero reconhece à capacidade de julgar um carácter “natural”, visto que os homens diferenciam-se na acção e na sabedoria, mas assemelham-se no acto de julgar. Esta capacidade de julgar é uma espécie de sentido inconsciente (tacito quodam sensu) que todos os homens actualizam quando avaliam os defeitos ou virtudes nas artes e nas ciências, sem que para isso seja necessário ou constrigente ser versado na arte e na ciência.
O Renascimento, por influência de Cícero, configura o juízo estético como uma capacidade humana que ocupa uma posição intermédia entre o intelecto e os sentidos, ou seja, como uma capacidade de relacionar o particular sensível ao universal e vice-versa e que parece assemelhar-se à aestimativa dos animais, aos quais nem Aristóteles negava totalmente a sabedoria.
Juízo e discrição tornam-se, termos quase sinónimos, sendo a segunda, por sua vez, aparentada à prudência. Os homens letrados são exemplos vivos desta capacidade de julgar naturalmente que não se pode equacionar segundo uma regra ou conceito. 
Campanella, autor tardio-renascentista, afirma que o gosto é um sexto sentido, uma espécie de tacto intuitivo que se assemelha à actividade da língua que distingue os diversos sabores, capacidade esta a que o autor chama discrição, em resultado da ambiguidade implícita do verbo sapere, que tanto pode significar “gostar” como “ter bom gosto”, “discernimento” ou “ser judicioso”.
Vemos que a tradição ocidental é perpassada por uma curiosidade e reflexão sobre a capacidade de julgar, mas sabemos que é no século XVIII que esta investigação se vai centrar, exemplarmente, no eidos da capacidade estética humana de julgar ou gosto.
A problemática que ocupa a reflexão moderna prende-se com a salvaguarda essencial da subjectividade que funda o juízo estético, sem, no entanto, o relegar para o domínio do privado, do relativo, do incomunicável e do irracional. Procura conciliar a subjectivização do belo que deixa de ser um em si para se transmutar num para nós, com a exigência de critérios, de uma relação com a objectividade, com o mundo unívoco evidente. Para tentar “traduzir” a pecularidade do plano estético, muitos autores recorreram a uma expressão reveladora da sua inefabilidade e complexidade conceptual e canónica, o “Não Sei Quê”. Tendo sido utilizada, durante todo o século XVIII em França, Itália e Espanha, exteriorizava o encanto misterioso e a indefinível atracção própria da beleza e das obras de arte. Esta expressão foi, muitas vezes, considerada como um refúgio para a ignorância e como uma renúncia resignada a uma procura radical da essencialidade desta esfera intrinsecamente humana. Mas, na fase de formação da estética moderna, pelo contrário, teve um papel importante. Por um lado, assinala a crise definitiva da teoria, durante muito tempo seguida no Ocidente, de que a beleza coincide com a harmonia e a proporcionalidade das partes, segundo regras explícitas. Por outro, marca o início da compreensão da individualidade própria e irredutível daquilo a que atribuímos valor estético.
Burke não recorre à expressão anterior para explicitar a sua visão sobre o juízo estético, mas liberta-o, também, das tradicionais concepções objectivas sobre o belo perspectivado como proporção, conveniência ou perfeição. Para o autor, estas não são causas do efeito da beleza. No entanto, o autor situa ainda esta dimensão apreciativa humana num quadro causal, como também David Hume que reconhece a natureza subjectiva do gosto, sustentando os seus critérios objectivos e universais em princípios como a autoridade dos entendidos e o “juízo do tempo”. Por fim, é também o caso de Baumgarten, discípulo de Leibniz e de Wolff, autor da obra filosófica Aesthetica datada de 1750 em que o termo estética aparece pela primeira vez. Nesta obra apresenta-nos o juízo estético como um juízo sensitivo relativo à perfeição.
Na sua origem, a estética tinha como finalidade primordial formar o gosto do público, quaisquer que fossem as interpretações explicativas do juízo estético. O gosto, segundo Voltaire formava-se insensivelmente numa nação que o não tinha, através da integração ou assimilação do espírito paradigmático dos bons artistas. Tornava-se uma qualidade privilegiada de alguns, de seguida a cultura adquirida por um povo, sobretudo pelas classes dirigentes. O termo adquiriu uma conotação pedagógica que se estendia à criação, com a delimitação de códigos de regras e à recepção do público. Contudo, a influência de Shaftesbury, sentida em França pela tradução da sua obra por Diderot, apresenta o gosto como um poder criador, como uma faculdade dotada de legislação própria. Já em Diderot, o bom gosto ultrapassa o respeito pelas convenções, orientando-se para a imitação do natural e do quotidiano.
Kant, por seu turno, reelabora os contributos dos seus predecessores e cria a sua terceira crítica que consiste num exame rigoroso da faculdade de julgar de modo a autonomizar a estética de qualquer interesse utilitário, moral ou intelectual, procurando explicitar o seu sentido essencial. Para o autor, o gosto é a faculdade de julgar esteticamente, permitindo ao homem aferir se uma coisa ou uma obra é bela. Trata-se de uma faculdade que pressupõe a harmonia ou unidade subjectivas entre a imaginação e o entendimento, faculdades cognoscitivas que não aprisionam o objecto conceptualmente, mas que, pelo contrário, são incitadas a apreciá-lo pela sua forma e nunca pela sua matéria atractiva, através de uma actividade indeterminada (não determinante), reflexionante, contemplativa e pura, fundamento do prazer anímico que não encontra satisfação na existência material do objecto, como no domínio da agradabilidade. Como vemos, na base do juízo de gosto kantiano, não existe uma finalidade subjectiva ligada ao interesse, nem uma finalidade objectiva ligada ao bem, mas uma finalidade sem fim, na medida em que privilegia a forma do objecto, na sua representação formal, condição de possibilidade da relação harmoniosa das faculdades representativas e do sentimento de prazer. Ora, este estado anímico, o livre jogo das faculdades do conhecimento, pode ser partilhado, comunicado, ultrapassando o nível privado e pessoal do agrado provado pelos sentidos. Esta comunicabilidade e discutibilidade estéticas apoiam-se na universalidade das condições subjectivas do juízo estético, porque sem elas a humanidade jamais poderia avaliar qualquer forma de um objecto sensível como belo ou feio. Kant enuncia ainda uma categoria que transcende o gosto: o sublime que permite avaliar o real segundo a grandeza e o terror, além da beleza sensível.
Em ruptura total com o século XVIII, a estética de Hegel rejeita o critério do gosto, pois considera-o superficial, insuficiente e exterior à arte. Segundo o autor, o gosto não implica o conhecimento técnico da criação artística, consequentemente a estética do gosto deverá ser substituída por uma estética doexpert ou do especialista , de modo a tornar a arte um assunto mais sério e a compreender o seu conteúdo substancial.
No século XIX, o gosto sobreviverá à estética romântica enquanto faculdade distintiva daquilo que é moderno e inovador. O novo homem de gosto é aquele que cria e ultrapassa a moda, ao mesmo tempo que esta se generaliza, desempenhando o gosto uma função ética numa sociedade cujos valores são problemáticos e indistintos. A partir de Baudelaire, o gosto não é mais incompatível com o desgosto repugnante e implica a possibilidade de ir contra a corrente da beleza oficial. O ideal de Baudelaire é o “belo bizarro”, fruto do trabalho e da imaginação de uma “sensibilidade nervosa”. O homem de gosto é mais sensível à fealdade/deformidade e à dissonância cuidadosamente evitada pelos seus predecessores. Esta tendência acentua-se no século XX tornando o gosto desconhecido de artistas como Picasso, Stravinsky ou Brecht. Assim, por exemplo, o quadro Guernica escapa à categoria do gosto, na medida em que a arte se afasta da beleza para enfrentar o sublime que Kant tinha reservado para a contemplação da imensidão e omnipotência da natureza. Actualmente, a arte tem origem na subjectividade intersubjectiva, porque sem critérios e sem um mundo universal, existem apenas estilos individuais. Consequentemente, para numerosos artistas a sua tarefa não se define pela descoberta de um mundo estranho a si, denotativo, mas pela auto-descoberta do seu mundo, conotativo, na medida em que a obra é entendida como uma extensão do sujeito. Segundo Kandinsky, esta actividade pressupõe um afastamento do mundo exterior para permitir a expressão da mais “pura vida interior”. Assim, no domínio da arte, vivemos numa ambiência que se assemelha ao perspectivismo nietzschiano, visto que as obras de arte são outros tantos mundos prespectivados que apenas representam o mundo anímico singular do seu criador. No entanto, outros artistas podem desejar, classicamente, revelar nas suas obras a verdade ou o ser.
Concluindo, a história da estética pode ser comparada,em geral, a um longo e gradual processo de esquecimento do mundo objectivo, unívoco e evidente e de rememorização da subjectividade humana que se expressa, indiscutivelmente, numa linguagem feita de experiências vividas em que o gosto não participa. Apesar das diferentes tentativas de restauração do seu valor no século XX, o gosto jamais reencontrou o lugar preponderante que ocupou na reflexão estética do século XVIII. Hoje, o conceito não é utilizado em crítica de arte , aplicando-se, por exemplo, ao contexto dos decors das cenas teatrais e cinematográficas.
Manuela Morais in filosofiadaarte.no.sapo.pt