O vazio - por António Lobo Antunes

No outro dia, em casa da minha mãe, pus-me a olhar os retratos nas cómodas, tentando compreender a diferença entre os mortos e os vivos. Nunca compreendi muito bem o que é estar morto, conforme não compreendo muito bem o que é estar vivo. Todas as fotografias continuam a falar, não em silêncio como eu pensava ou sou eu que falo nelas, por eles? A minha avó, criança, continua a ser assim ou transformou-se na senhora que depois conheci? Qual delas é, de facto, a mãe da minha mãe e qual das várias representações, que se convencionou ser eu, a sente como do seu sangue? E qual das representações do que sou escreve isto? A morte significará não estar ou, apenas, uma ausência episódica? Aqueles que se convencionou terem morrido e, portanto, haverem-se extinto, como se extinguiram dado que me aparecem nos sonhos, dado que existem na minha cabeça, dado que continuam a modificar-se em mim? Se, por exemplo, penso

- Agora estou em paz com o meu pai

sou eu que estou em paz com o meu pai ou o meu pai que está em paz comigo? Qual de nós mudou: ele, eu, os dois ou aquilo que nos rodeia? E como se compreende o facto das pessoas que faleceram continuarem a alterar-se? Em garoto pensava: morre-se, vai-se para baixo da terra, acabou, fica a saudade que se dissolve, com os anos, por seu turno: isto é, no mínimo, ingénuo e, claro, infantil. Como se explica o motivo de, ao ir a casa dos meus pais, encontrar sempre o meu irmão Pedro? Mesmo que outra pessoa se sente no seu lugar à mesa é o Pedro quem o ocupa e, como em geral não falo, fico a tentar ouvir as conversas, oiço-o a participar nelas e tenho a certeza que os meus outros irmãos também o ouvem. É impossível não ouvirem e isto não é um produto da minha cabeça ou a negação do seu desaparecimento: é uma realidade física, independente do que sinto ou imagino. Estamos todos juntos, reais, presentes e, de todos, dá-me ideia que sou o menos verosímil. Quem adoece, suponhamos, está mais longe ou mais perto de estar mais perto de nós? Quero dizer realmente perto, numa realidade muito mais absoluta que antes? E pergunto-me se a morte existe ou não passa de uma convenção, como os números ou as datas, onze de julho, três de maio, vinte e quatro de janeiro. Porquê esta necessidade de catalogar, seriar, inventar noções absurdas? Onze de julho é absurdo. Onze e julho que sentido possuem? Ou, para voltar à morte, afigura-se-me uma noção sem nexo decretar que o Pedro morreu e eu não. Onde começa a ausência e, antes ainda, o que é a ausência? A mão que escreve isto escreve de facto isto ou deixa um rasto no papel que a gente toma por isto? Tenho a sensação que a minha mãe entende o que estou a dizer. Na última vez que estive com ela pus a testa contra a sua testa e principiei a falar-lhe de tudo isto. O mais extraordinário é que começou a sorrir, isto é um sorriso esteve na sua cara o tempo inteiro e acenava que sim. Será que ela, que pensamos tão próximo da morte, compreende? Ou será que julgamos que ela próximo da morte porque compreende? Nunca estivemos muitas vezes de acordo e tive a impressão

(tenho receio de escrever certeza)

que, finalmente, nos entendíamos. A certa altura disse-lhe

- Apetece-me estar de novo na sua barriga

e o sorriso da minha mãe aumentou: apareceu-me na ideia que estava a comunicar-me que nunca saí de lá, e os retratos meus que para ali estão não são eu, ou são um eu a que se decidiu, ignoro porquê, chamar António. O verdadeiro António não existe, não nasceu, não cresceu, não escreve isto. Anda por aí apenas e não sei quem é. Andamos por aí apenas e não sabemos quem somos, inventados por quem e fazendo parte desse quem? Estas palavras estão a sair sem que eu tome parte nelas, sem uma emenda: não posso emendar porque não fui eu quem as fez, foram os retratos das cómodas, os que chamam mortos e os que chamam vivos ou outra instância que desconheço. António Lobo Antunes nem sequer é um conjunto de células confusas. É um número ou uma data que é todos os números e todas as datas ou nenhum número e nenhuma data, um acaso que se formou de súbito e se vai desfazer ao calar-se. O que fica depois? Nada que interesse: uma sala a anoitecer pela qual passou uma sombra fugaz que não pertence a ninguém. Não percebo isto porque não posso perceber isto e, muito menos, perceber o que sou, como sou, o que faço. Uma espécie de nada plasmado em molduras. Se as olharmos muito tempo desaparecem. O que fica depois? Uma sala com cómodas vazias, cadeiras vazias, um tempo sem tempo, sofás com marcas de corpos que não existem. Ou nada disto. A noite que começa apenas, mas haverá noite? Um espaço, mas haverá espaço? Um imenso silêncio de que ninguém faz parte? A barriga da minha mãe onde jamais estive porque ela jamais esteve igualmente? Sinto que a caneta vai parar. Que pára a pouco e pouco. Que parou. O que ficou nestes papelinhos? Acho que nada. Nada de nada. Apenas os vivos e os mortos que talvez andem por aí. Talvez andem por aí. Andem por aí. Por aí. Andem. ndem. Dem. Em. M. Para sempre. O vazio. Este texto nunca foi escrito.

António Lobo Antunes in visão.pt