Sonhos e monstros

Uma célebre gravura de Goya, da série Los Caprichos (1799), mostra o artista adormecido sobre uma mesa, com inquietantes figuras bestiais à sua volta. O próprio Goya lhe deu o título: O sonho [ou o sono] da razão produz monstros. Sempre me pareceu que uma interpretação simplesmente psicológica seria a mais pobre. Vivendo entre o Antigo Regime e o mundo posterior às revoluções liberais, Goya testemunhou a dimensão demencial da razão. Ele viu e pintou o modo como a Revolução Francesa se transformou de um símbolo da emancipação no trampolim para um imperialismo sangrento. Os sonhos da razão, mesmo os de liberdade, tendem, se não forem submetidos ao controle político da crítica e da moderação, a transformar-se em pesadelos. Os séculos XIX e XX viram como a razão, desnaturada em ideologia, conduziu o mundo às mais hediondas catástrofes bélicas. Contudo, o século XXI está a mostrar-nos uma realidade nova. O que é que existe de comum entre a invasão do Iraque por G. W. Bush e os bombardeamentos da NATO na Líbia? O que existe de semelhante nas hesitações ocidentais em relação ao conflito na Síria, ou, na série de disparates evitáveis que reacenderam a guerra num país europeu, como ocorre agora na Ucrânia? Desta vez não se trata de uma desmesura da razão. Quando analisamos o modo de "formação da política externa" que conduziu os países ocidentais a meterem-se em campos minados, apesar dos alertas de muitos peritos e conselheiros, percebe-se que o grosseiro erro de cálculo e o improviso também produzem os seus monstros. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante é uma espécie de distopia, saída directamente da diligente incompetência que grassa em muitas chancelarias ocidentais.
Viriato Soromenho Marques in dn.pt