O milagre grego

Chamou-se “o milagre grego”, com pleno direito, a essa criação efectuada pela inteligência helénica: criação de uma ciência e de uma filosofia que não são unicamente ciência e filosofia grega, mas (...) a ciência e a filosofia em geral, cuja ideia, orientação e metodologia permanecem em toda a ciência e filosofia posterior, inspirando-a e dirigindo-a. Contudo, na exaltação desse milagre, ultrapassou-se amiúde o limite de uma equilibrada compreensão e avaliação histórica, e pelo desejo de ressaltar o seu carácter excepcional tem-se querido, por vezes, separá-lo e isolá-lo de toda a continuidade de desenvolvimento histórico, quer negando qualquer influxo ou contribuição de outras culturas anteriores no seu nascimento e desenvolvimento inicial, quer caracterizando-o mediante uma oposição com os caracteres e desenvolvimentos das culturas posteriores.
Os primeiros passos da civilização grega foram dados exactamente -facto significativo- nas colónias da Ásia menor, onde o contacto directo e indirecto com os povos mais adiantados do Oriente estimulou as energias criadoras do génio helénico, que logo afirmaram o seu poder maravilhoso, superando rapidamente toda a criação das culturas predecessoras.
O nascimento da filosofia aparece por conseguinte solidário de duas grandes transformações mentais: um pensamento positivo, excluindo qualquer força de sobrenatural e rejeitando a assimilação implícita estabelecida pelo mito entre fenómenos físicos e agentes divinos; um pensamento abstracto, despojando a realidade dessa força de mudança que lhe conferia o mito (...).
Sobre as condições que permitiram na Grécia do VI século, esta dupla revolução, Cornford não dá qualquer explicação. Mas no meio século que decorre entre a publicação das suas duas obras, o problema foi posto por outros autores. (...) Schuhl, em introdução ao estudo da filosofia positiva dos Milésios, acentuava a amplitude das transformações sociais e políticas que precedem o século VI. Notava a função libertadora que desempenharam, para o espírito, instituições como a moeda, o calendário e a escrita alfabética; o papel da navegação e do comércio na nova orientação do pensamento voltado para a prática. Benjamin Farrington, por seu turno, ligava o racionalismo dos primeiros físicos da Jónia ao progresso técnico das ricas cidades gregas da Ásia menor. Substituindo os antigos esquemas antropomórficos por uma interpretação mecanicista e instrumentalista do universo, a filosofia dos jónios reflectiria a importância crescente da técnica na vida social da época. O problema foi retomado por George Thomson, que formula contra a tese de Farrington uma objecção decisiva. É impossível estabelecer um laço directo entre pensamento racional e desenvolvimento técnico. No plano da técnica a Grécia nada inventou nem inovou. Tributária do oriente neste domínio, nunca realmente o ultrapassou. E o Oriente, apesar da sua inteligência técnica, nunca pode libertar-se do mito nem construir uma filosofia racional. Cumpre, portanto, fazer intervir outros factores e Thomson insiste, com razão, sobre dois grandes grupos de factos: a ausência, na Grécia, de uma monarquia tipo oriental, bem cedo substituída por outras formas políticas; os começos, com a moeda, de uma economia mercantil, o aparecimento de uma classe de comerciantes, para os quais os objectos se despojam da sua diversidade qualitativa (valor de uso) e só têm a significação abstracta de uma mercadoria semelhante a todas as outras (valor de troca), Se se quiser, no entanto, discernir de mais perto as condições concretas nas quais se pode operar a mutação do pensamento religioso em pensamento racional, é necessário fazer um novo rodeio. A física jónia esclareceu-nos sobre a primitiva filosofia, mostrou-nos aí uma transposição dos mitos cosmogónicos, a «teoria» dos fenómenos de que o rei, nos tempos antigos, possuía o domínio e a prática (...).
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