Paul Ricoeur e a questão da inovação semântica

No meu entender, o primeiro papel que o literário exerce na obra de Paul Ricoeur está expresso na sua textualidade, ou seja, no modo como ele entretece os seus textos, modo esse que pode ser lido como uma estratégia dramática se se tiver em conta que ela expressa e explora a fecundidade do conflito de interpretações. Nesse quadro, os textos de Paul Ricoeur são sempre o resultado de um trabalho original de composição de outros textos cuja matriz fundamental é a oposição e a exclusão. Esse trabalho original de composição a partir de posições teóricas antagónicas – como é o caso, por exemplo, da sua teoria da linguagem que estrutura no confronto do estruturalismo com a fenomenologia ou da problemática da identidade narrativa, organizada a partir do confronto entre a filosofia analítica e a hermenêutica – é dirigido para extrair uma significação nova do próprio antagonismo e decorre da convicção do autor de que o conflito interpretativo é o lugar de inscrição de uma realidade marcada com o sinal do excesso em relação às possibilidades discursivas da racionalidade humana. E é no quadro desta perspectiva ricoeuriana sobre a incomensurabilidade entre a infinitude da realidade e a finitude da racionalidade humana que o literário surge, como temática, no caminho filosófico de Ricoeur.
Em 1950, Paul Ricoeur publica uma obra. Le volontaire et l’involontaire, onde define o seu projecto filosófico – construir uma Filosofia da Vontade, em três momentos: uma Eidética, uma Empírica e uma Poética. Esse projecto nunca foi consumado, pelo menos nos termos em que foi inicialmente concebido, uma vez que Ricoeur nunca chegou a elaborar uma Poética da Vontade e ele próprio, numa visão retrospectiva, considera que foi uma imprudência a sua formulação. Todavia, a exigência de um outro uso da linguagem que não apenas o uso filosófico para dar conta do sentido da existência humana estava já presente no momento de dar figura ao seu Projecto filosófico, tal como inicialmente o formulou.
Em 1950, Paul Ricoeur considerava que apenas a linguagem poética poderia servir de mediação a uma reflexão filosófica sobre a realidade, tomada na sua totalidade. Quase 30 anos depois, em 1975, com La Métaphore Vive, e, nos anos de 1983 a 85, com os três volumes de Temps et Récit, procura legitimar filosoficamente aquilo que designa como inovação semântica, que se pode considerar como o solo alimentador da analítica conceptual da prática filosófica, em regime ontológico.
Entre a primeira e as últimas obras referidas, Paul Ricoeur publica, em 1960, como parte da sua Empírica da Vontade, a obra La Symbolique du Mal, onde desenvolve uma hermenêutica sobre os textos literários – hinos, mitos, tragédias – do Antigo Médio-Oriente, de Israel e da Grécia, acerca do mal, sendo a partir dessa hermenêutica que configura a sua primeira posição sobre o mal. 
No final dessa obra, num capítulo intitulado Le symbole donne à penser, Paul Ricoeur faz uma sistematização onde apresenta a sua forma de conceber a relação possível entre o discurso filosófico e o discurso literário, enquanto discursos específicos e autónomos, sistematização essa que terá um desenvolvimento maior em La Métaphore Vive e Temps et Récit, através do filosofema inovação semântica. 
O que suporta a posição de Paul Ricoeur é o seu conceito de uso literário da linguagem, que o aproxima de Heidegger. Diz Paul Ricoeur:

E a literatura é aquele uso do discurso em que várias coisas são especificadas ao mesmo tempo e onde o leitor não é intimado a entre elas escolher. É o uso positivo e produtivo da ambiguidade.

O que o discurso poético traz à linguagem é um mundo pré-objectivo onde nós nos encontramos já de nascença, mas no qual projectamos, também, as nossas possibilidades mais autênticas. É preciso, por isso, abalar o reino do objecto para deixar ser e deixar dizer-se a nossa pertença primordial ao mundo que habitamos, isto é, que, simultaneamente, nos precede e recebe a marca das nossas obras.

Ambas as citações remetem para o reconhecimento do valor cognitivo da linguagem literária, sendo a inovação semântica o testemunho desse reconhecimento.
Do ponto de vista ricoeuriano, toda a linguagem é trabalho e transporte – trabalho de articulação e de inteligibilidade e transporte de uma radicalidade experiencial, extra linguista, mas que só advém como significação no plano da discursividade. No contexto desta perspectiva sobre a linguagem, o filosofema inovação semântica, de que as metáforas vivas são a figura por antonomásia, representa o trabalho de trazer à superfície da significação a profundidade da nossa experiência de pertença a um mundo que desde sempre nos excede e nos antecede e à qual a linguagem científica e estritamente conceptual não consegue aceder.
As metáforas vivas, que como disse, representam paradigmaticamente a inovação semântica, funcionam, então, como redescrições da realidade, ou seja, como formas possíveis de a significar, abrindo novos campos de significação. As metáforas vivas representam, no plano da significação ontológica, o mesmo papel dos modelos na investigação científica – são princípios heurísticos que permitem desvelar novos sentidos para a realidade.
Em Temps et Récit, Paul Ricoeur alarga à narrativa esta capacidade criadora da linguagem para criar sentidos novos ou novas significações, por uma razão equivalente: o facto de as narrativas trabalharem e darem figura de inteligibilidade à experiência humana da temporalidade. Tal como o mal, o tempo é inacessível a uma síntese conceptual perfeita, pelo que a narrativa ficcional constitui uma mediação insuperável no aprofundamento da abordagem da questão temporal. Ao configurar e propor novas formas de organizar a experiência humana do tempo, a narrativa ficcional ganha um poder realizante e operativo. È neste sentido que Paul Ricoeur explora a obra de Virgínia Woolf, Mrs Dalloway, em Temps et Récit, onde declara: 

Portanto, não é na oposição simplista entre o tempo dos relógios e o tempo interior, que é necessário que paremos, mas sim na variedade de relações entre a experiência temporal concreta das diversas personagens e o tempo monumental. As variações sobre o tema desta relação conduzem a ficção bem mais longe do que a oposição abstracta indicada há instante e fazem dela, para o leitor, um poderoso detector das infinitamente variadas maneiras de compor entre elas perspectivas sobre o tempo, o que a especulação apenas fracassa a mediar.
Estas variações constituem, aqui, uma gama de “soluções” cujos extremos são figurados, por um lado, pelo acordo íntimo com o tempo monumental das figuras da Autoridade, resumidas no Dr. Bradshaw e o “terror da história” - … - figurado por Septimus.


Segundo Ricoeur, há, então, dois ganhos teóricos que a filosofia do tempo obtém se explorar as “variações imaginativas” que Mrs Dalloway desenvolve. Por um lado, enriquece os modos de relacionar a experiência interna do tempo com o tempo simplesmente exterior e mensurável, ultrapassando a pobre alternativa dicotómica tempo subjectivo/tempo objectivo. Por outro, reafirma a impossibilidade de o tempo poder ser experienciado em unidade, e, portanto, aprofunda as razões para conceber a dimensão constitutivamente aporética da temporalidade. Chegamos, assim, a uma valorização do discurso literário oposta à de Platão em A República, porque, reconhecendo com ele, que há algo de peculiar no uso poético da linguagem, considera-se, em oposição e ele, que essa peculiaridade é uma mais valia da qual a exploração conceptual pode e deve aproveitar e não um desvario irracional, fonte de erro e de ilusão.
Mantendo, claramente, a diferença entre o discurso filosófico e o discurso literário, Paul Ricoeur pode, contudo, afirmar que “o discurso especulativo tem a sua possibilidade no dinamismo semântico da enunciação metafórica”, reconhecendo a necessidade da prática filosófica se desenvolver mediante a abertura ao não filosófico, nomeadamente, ao literário. A sua perspectiva hermenêutica que se contrapõe ao que designa por via curta heideggeriana, vai desenhar uma via longa de atingir a radicação ontológica da existência que, não é mais do que um longo caminho em que a filosofia se vai constituindo através do diálogo e da apropriação filosófica das suas margens. Nessa via longa, em cujo termo a ontologia é apenas a Terra Prometida e, tal como ela, apenas vislumbrada, o recurso ao uso literário da linguagem é o último gesto de uma razão finita que, todavia, não quer desistir da esperança do sentido.
Fernanda Henriques in http://dspace.uevora.pt/rdpc