Um novo rumo para a escola - por M.M.Carrilho

Não vale a pena falar de Nuno Crato nem das "salsichas educativas" do primeiro--ministro. O que é preciso é começar a preparar outro futuro para a escola. E o facto essencial é este: a escola deixou cada vez mais, nas últimas décadas, de transmitir saberes e conhecimentos, valorizando no seu lugar o ato de aprender que, (...) se tornou por sua vez progressivamente mais vago e indefinível.
A transmissão consistia, tradicionalmente, numa espécie de transferência de saberes e de símbolos herdados do passado, que o aluno devia acolher e assimilar. Ao valorizar o aprender aposta-se, pelo contrário, na autoconstrução individual do conhecimento.
E se não se pode, nem deve, duvidar que os tempos da transmissão autoritária são tempos definitivamente ultrapassados, também não se deve, nem pode, deixar de reconhecer que o modelo do aprender que a substituiu rapidamente colapsou, incapaz de conduzir a uma escola formadora, estimulante e eficaz.
Para fazer a escola sair deste impasse e encontrar um novo rumo, é preciso compreender que as suas dificuldades não são de raiz pedagógica, mas civilizacional, que elas decorrem da rejeição, que é constitutiva da modernidade, das sociedades dominadas pela tradição, e da sua substituição por sociedades movidas - ainda que contraditoriamente - pela autonomia e pelo conhecimento.
Assim sendo, do que se trata hoje é de procurar, com os olhos postos nesta dinâmica, reconciliar essas duas dimensões. Até porque a transmissão dos saberes, se deixou de dominar a escola, continuou contudo a revelar-se decisiva na formação dos indivíduos. Talvez de uma forma mais invisível, como afirmou Marcel Gauchet, mas ela continua insubstituível em qualquer tipo de autoconstrução individual, porque o ser humano só consegue olhar para o futuro assumindo-se como um ser de cultura e de história.
Por isso, contra as tentações de retorno a qualquer forma de transmissão autoritária, o que é preciso é perceber em que é que consiste a atividade de aprender e construir com ela uma nova aliança. Para o conseguir, impõe-se assumir que aprender não é brincar, mas uma atividade em descontinuidade com a experiência natural da criança ou do jovem - e, portanto, difícil. Aprender a ler, a escrever ou a contar, bem como aprender matemática, física ou geografia, é sempre um esforço para entrar em mundos já constituídos, que num primeiro momento só podem parecer estranhos, abstratos, artificiais, etc..
Mas o essencial do aprender consiste justamente na progressiva dissipação desta dificuldade pela apropriação de significados que não se conheciam e que, pela sua anterioridade e objetividade, nunca o indivíduo poderia conseguir só por si. (O exemplo da própria língua ajuda a perceber isto: ela é anterior e exterior a cada indivíduo, que tem de se apropriar dela como de uma herança para poder constituir-se como sujeito consciente, responsável e autónomo.)
Assim compreendida a nova aliança entre a aprendizagem e a transmissão, ela pode dar um novo rumo à escola. A transmissão deixa de ser uma inculcação para se tornar uma iniciação, que se revela vital para libertar e estimular a faculdade de aprender, viabilizando o acesso do aluno aos múltiplos universos dos saberes.
Deixo para o fim um ponto crucial: o que faz da escola uma instituição singular é que ela tem a mudança no seu interior, isto é, nos alunos. E para eles as novas tecnologias são o seu mundo natural, em que - e esta é talvez a maior mudança - eles têm uma cada vez maior iniciativa.
Isto conduz a uma escola mais efervescente, mas também mais caótica, dada a multiplicidade das referências e a inexistência de critérios fiáveis de ordenação e de verificação das informações e dos conhecimentos: é isto que torna o papel do professor diferente, mas vital.
E mais vital do que nunca, não só porque ele agora tem de saber responder a questões imprevistas mas também de pôr ordem no caos de uma autodaxia generalizada, revitalizando a escola como instituição central de confiança nas sociedades contemporâneas. Não tenhamos dúvida, a era digital vai aumentar de um modo sem precedentes a exigência escolar, o que é preciso é estar à altura desse desafio.
Manuel Maria Carrilho in dn.pt