O que é a epistemologia? por Olga Pombo

O que é a epistemologia e qual o seu estatuto como disciplina é tema controverso, objecto de diferentes perspectivas defendidas por diversos autores. Não cabe aqui encetar tal discussão mas tão só apontar uma primeira distinção relativa a três modos fundamentais de delineamento do seu estatuto disciplinar.
  • Epistemologia como ramo da filosofia – no prolongamento da reflexão gnoseológica e metodológica, a epistemologia é entendida como uma reflexão filosófica sobre o conhecimento científico, pelo que constitui tarefa de filósofos (é o caso de Peirce, Husserl ou Cassirer).
  • Epistemologia como actividade emergente da própria actividade científica – a epistemologia é considerada como uma tarefa que só o cientista pode realizar, analisando e reflectindo sobre a sua própria actividade científica, explicitando as suas regras de funcionamento, o seu modo próprio de conhecer. Neste caso, o cientista como que ultrapassa o seu papel assumindo o de filósofo (é, por exemplo, o caso de Einstein, Heinsenberg ou Monod).
  • Epistemologia como disciplina autónoma – a epistemologia é considerada como uma investigação metacientífica, uma “ciência da ciência”, disciplina de segundo grau constituindo domínio de epistemólogos e que tem o seu próprio objecto (o discurso científico e/ou a actividade científica e os seus produtos) e o seu próprio método (consoante os casos, a análise lógica da linguagem científica no neo-positivismo de Carnap, Hempel, Raichenbach ou Nagel; o método psico-genético e histórico-crítico do projecto piagetiano de uma Epistemologia Genética; o comparativismo transcendental de G. G. Granger de uma epistemologia comparatista; ou ainda as abordagens mais teoréticas e especulativas de Bachelard, Popper, Kuhn ou Lakatos). 
Três grandes períodos relativamente ao tipo de questões que a Filosofia tem colocado à Ciência.
A ciência constituiu, desde sempre, um dos pontos centrais de reflexão da filosofia. Os parâmetros pelos quais esta reflexão se orienta têm mudado ao longo dos tempos, fruto, em grande parte, da própria evolução da ciência. Numa tentativa de compreensão daquela mudança poderiam considerar-se três grandes períodos relativamente ao tipo de questões que a filosofia tem colocado à ciência.
  1. Num primeiro período, a pergunta central consistiria em saber se a ciência é ou não possível. A este respeito duas posições opostas se constituíram logo no mundo antigo: a dos cépticos que recusavam a possibilidade da ciência dado considerarem não ser possível chegar a um conhecimento universal, pois todo o conhecimento é necessariamente subjectivo; e a dos grandes sistemas filosóficos de Aristóteles e Platão que defendiam a ciência e a sua possibilidade. Posteriormente, no Renascimento, assiste-se a uma nova crise céptica, por exemplo, com Montaigne que, em pleno século XVI, afirmava nada saber nem nada ser possível saber de modo verdadeiro. Também para Francisco Sanches, assim como para muitos outros cépticos seus contemporâneos, há muito mais coisas que não sabemos do que aquelas que sabemos e praticamente nada de verdadeiro nos é possível conhecer. Face a este ambiente negativo em relação à possibilidade da ciência novamente se levantaram em sua defesa grandes sistemas filosóficos que, desta vez, usufruíram de condições mais favoráveis muito diferentes das do período anterior. É o caso de Descartes ou Leibniz que têm já como pano de fundo a ciência experimental de Copérnico e Galileu.
  2. Um segundo período poderia ser estabelecido a partir da obra de Kant, no século XVIII. Tendo atrás de si o edifício científico muito sólido de Newton, Kant considera não ter já cabimento perguntar se a ciência é ou não possível pois ela constituía já um facto indiscutível. Cabe agora perguntar como é que a ciência é possível, quais as condições que permitiram passar de um conhecimento subjectivamente determinado a um conhecimento universal como o da física de Newton.
  3. Finalmente, num terceiro período, que se prolonga até aos nossos dias, a filosofia centra-se na questão de saber o que é a ciência. Trata-se de uma questão muito antiga e muito ampla para a qual são necessários cuidados especiais na sua formulação. Na verdade, a fim de se conseguirem respostas significativas,. torna-se necessário circunscrever a questão. Entre as várias formas de perguntar o que é a ciência, distinguiríamos dois modos fundamentais:
(a) Um modo, digamos, normativo – em que se pergunta sobretudo quais as condições de validade que permitem distinguir um enunciado científico de um não científico. A este respeito consideram-se três grandes tipos de respostas:
Confirmação positiva – os enunciados científicos distanciam-se dos não científicos porque têm a possibilidade de serem confirmados positivamente pela experiência. Assim, haverá sempre algures, na relação entre o sujeito e o mundo, a presença do facto, enquanto forma positiva de confirmar um enunciado. Este tipo de resposta corresponde à posição positivista e neo-positivista.
Confirmação negativa – um enunciado é científico, não porque possa ser confirmado pela experiência, mas precisamente quando por ela pode ser refutado. Esta posição, Bachelariana na sua origem, é fundamentalmente desenvolvida por Popper o qual afirma que um dado enunciado pode ser considerado científico quando for possível fazer tentativas no sentido de o refutar.
Confirmação formalista – um enunciado é científico quando é internamente compatível com um dado conjunto de proposições que formam um sistema a partir do qual podem ser operativamente deduzidas um leque significativo de consequências. Os defensores desta solução afirmam que não há qualquer possibilidade de confirmar, quer positiva, quer negativamente, qualquer enunciado científico pela sua confrontação com a realidade. Trata-se de uma concepção completamente diferente das anteriores, não experimentalista mas formalista, que fecha a ciência numa linguagem própria, num sistema interno de signos que pode vir a mostrar-se importante para compreender o mundo.
(b) Um modo descritivo – em que a pergunta seria: como é que a ciência funciona? Quais os seus métodos? Qual a natureza dos processos em jogo? Quais as relações que estabelece com outros tipos de conhecimento? É o caso de Giles Gaston Granger para quem a epistemologia consiste na tentativa de "descrever e fazer compreender o sentido, o alcance e os processos desse esforço de racionalização na explicação dos fenómenos que o movimento da ciência exprime"

Categorias Epistemológicas
A diversidade de respostas a estas questões traduz uma grande diversidade de concepções da ciência. Torna-se assim necessário encontrar categorias que sirvam para as classificar e organizar. É nesse sentido que se apresenta a proposta das quatro categorias epistemológicas:

  1. Epistemologias gerais e regionais (esta categoria diz respeito ao âmbito de uma epistemologia, à extensão do seu campo de análise). Numa perspectiva generalista considera-se a ciência na sua totalidade. Trata-se de uma epistemologia que procura pensar a ciência na sua globalidade ou as ciências no seu conjunto.As primeiras epistemologias foram as regionais que, muitas vezes, surgiram sob a forma de história – da matemática, por exemplo. Foi Augusto Comte quem formulou, no sec. XIX, a primeira concepção generalista da ciência. Para este autor, as várias ciências são expressão da actividade do espírito humano, embora cada uma tenha a sua especificidade. Por esta razão, se pode fazer a epistemologia da física, da matemática, das ciências humanas, mas, para conseguir uma verdadeira compreensão da ciência, é necessário articular todas essas disciplinas e reconhecer a sua pertença a um núcleo fundamental. Kuhn é o outro autor que se integra nesta perspectiva na medida em que os seus trabalhos, embora incidam sobretudo sobre a Física, dizem respeito à ciência em geral, procurando explicá-la na globalidade e não numa área científica em particular. Numa perspectiva regionalista considera-se uma ciência em particular como a matemática, a biologia, a sociologia, entre outras. Canguillhem ou Monod constituem exemplos de epistemologias regionalistas na medida em que focalizam os seus estudos especificamente na Biologia.Torna-se difícil enquadrar Bachelard numa destas áreas pois tanto pode pertencer a uma como a outra consoante o prisma através do qual se analisam os seus trabalhos, o que, por outro lado, mostra bem o carácter artificial deste tipo de classificações. Por outro lado, ele próprio considera que a epistemologia deve partir das várias regiões do saber, acompanhar cada uma delas, a sua evolução, o seu crescimento, as suas rupturas. Só a posteriori faria sentido um sistema epistemológico geral. Dentro desta perspectiva regionalista defende mesmo uma epistemologia de pormenor epistemológico onde cada noção, cada conceito, é objecto de um estudo epistemológico profundo e detalhado.
  2. Epistemologias continuistas e descontinuistas (esta categoria diz respeito ao modo como é entendido o progresso da ciência).Segundo os continuistas a ciência progride sem sobressaltos uma vez que cada teoria contém os fragmentos, as bases ou os embriões da teoria seguinte. Os epistemólogos defensores desta perspectiva procuram compreender como é que uma teoria engendra ou prolonga uma outra, estabelecendo relações de filiação entre elas. O continuista tende portanto a considerar as mudanças qualitativas como resultantes de um acréscimo quantitativo, que se constitui de uma forma uniforme, numa escala sempre ascendente. O progresso será então uma lenta e contínua aquisição de novas verdades em que umas proposições engendram outras procurando mostrar de que modo uma proposição mais recente tem as suas raízes em teorias mais antigas e, por sua vez, abre para o futuro um leque de possibilidades. De acordo com os descontinuistas a ciência progride através de rupturas, por negação de teorias anteriores. Estas epistemologias estão especialmente atentas não às filiações mas às rupturas, não aquilo que liga as teorias entre si mas aquilo que as separa. O progresso dos conhecimentos científicos faz-se através de rupturas, isto é, através de grandes alterações qualitativas que não podem ser reduzidas a uma lógica de acréscimo de quantidades; faz-se através de momentos em que se quebra a tradição e em que esta é substituída por uma nova teoria. Enquanto que, as primeiras epistemologias são predominantemente continuistas, este modo descontinuista de conceber a ciência é muito característico das últimas cinco décadas. Para Bachelard, por exemplo, o progresso da ciência faz-se “dizendo não” às teorias e concepções anteriores. A descontinuidade da ciência revela-se em muitos aspectos, por exemplo, nas técnicas que podem ser directas ou indirectas; nos conceitos que evoluem no sentido de uma maior racionalidade; nos métodos, nos próprios objectos que, de existentes na natureza, passam cada vez mais a ser fruto da criação intelectual do cientista. Segundo Kuhn, outro descontinuista, não é apenas a teoria que muda mas sim todo o paradigma. Há descontinuidades no próprio modo de pensar o mundo, nas decisões metafísicas que o fundamentam, nas práticas científicas comuns a uma determinada comunidade.
  3. Epistemologias cumulativistas e não cumulativistas (esta categoria diz respeito ao modo como é entendida a relação temporal que se estabelece entre a ciência e a verdade). Os epistemólogos cumulativistas defendem que a ciência é progressiva, resultado de um acréscimo de saber, de uma acumulação de conhecimentos que se processa ao longo da escala do tempo. Durante esta progressão, a ciência aproxima-se cada vez mais da verdade, cada nova teoria sendo mais verdadeira que a anterior. Esta perspectiva pode ou não admitir a existência de rupturas na ciência, ou seja, estar articulada com concepções descontinuistas (em que cada novo estádio, determinado por uma fase de ruptura, está mais próximo da verdade que o anterior) ou, pelo contrário, conceber de forma contínua o acréscimo de saber característico do conhecimento científico. Bachelard é nitidamente um filósofo cumulativista. Ele defende que a ciência cresce ao longo do tempo através de um processo de acumulação de conhecimentos. É importante frisar porém que, segundo este autor, tal crescimento da ciência em direcção à verdade não se faz por justaposição mas sim por reorganização dialéctica. Numa perspectiva não cumulativista cada nova teoria não é necessariamente mais verdadeira que as anteriores, constitui apenas uma outra maneira de ver o mundo. Aliás, a questão da proximidade em relação à verdade não é relevante. O que importa é avaliar de que modo, cada nova teoria, além de constituir uma diferente maneira de pensar o mundo, possui um campo de aplicação maior ou menor que as anteriores. Para Kuhn não é possível nem sequer importante saber se um dado paradigma é mais verdadeiro que os outros; interessa é saber que esse paradigma é outra maneira de pensar o mundo e outro o seu campo de aplicação. O ideal seria ter vários paradigmas disponíveis com os seus vários campos de aplicação. O facto de um paradigma vir depois do outro não significa que seja mais verdadeiro, significa muito simplesmente que é outro. Em paradigmas passados consideram-se alguns fenómenos que os actuais não conseguem explicar. Perante a física Newtoniana e a física da relatividade um epistemólogo cumulativista dirá que a segunda é mais verdadeira do que a primeira porque é mais fiel em relação ao que efectivamente ocorre na natureza. Um epistemólogo não cumulativista, como Kuhn, tenderá pelo contrário, a dizer que constituem dois paradigmas diferentes que correspondem a duas maneiras diferentes de conceber o mundo e praticar a ciência.
  4. Epistemologias internalistas e externalistas (esta categoria diz respeito ao tipo de relação que se estabelece entre a ciência e as restantes actividades humanas)Para os internalistas a ciência constitui uma forma autónoma do conhecimento. A sua especificidade é tão grande que é possível, e nalguns casos indispensável até, entendê-la abstraindo de tudo aquilo que a rodeia. A ciência deve ser pensada, argumentam os internalistas, em função do desenvolvimento dos seus próprios objectos, leis, métodos e processos. Ao entrar com outros factores externos perturba-se a compreensão de uma construção intelectual que vale por si, que tem a sua própria força, a sua própria dinâmica. A ciência deve pois ser estudada independentemente de quem a produz e das condições históricas da sua emergência. Bachelard tem claramente uma posição internalista. Para ele, a ciência é um continente muito próprio, muito específico e por isso, o seu desenvolvimento deve ser visto independentemente da biografia de quem a faz e do contexto em que ela se produz. Numa perspectiva externalista a ciência é uma actividade humana que para ser compreendida, necessita de ser inserida no conjunto mais amplo de todas as actividades humanas. Ao estudar a ciência de uma determinada época há que estudar a estrutura social, a relação das classes, o modo de produção, a personalidade dos cientistas, os sistemas artísticos e culturais dessa época. Dentro de uma perspectiva externalista, Ziman concebeu um modelo de ciência que apresenta três dimensões essenciais: psicológica, filosófica e sociológica. Na mesma linha, o epistemólogo francês Koyré afirma que só se entenderá a ciência e o seu progresso se se entender a cultura humana na qual ela nasceu, a cujas necessidades responde, as técnicas a que dá origem e que, por sua vez, vão interferir nas próprias condições humanas.

Olga Pombo in educ.fc.ul.pt