O Inatismo cartesiano

Descartes distingue três tipos de ideias: inatas, adventícias e factícias. As ideias adventícias são aquelas que nos chegam a partir dos sentidos, as factícias são provenientes da nossa imaginação, uma combinação de imagens fornecidas pelos sentidos e retidas na memória cuja combinação nos permite representar (imaginar) coisas que nunca vimos. 
A grande questão porém é a de saber se todas as nossas ideias se podem explicar destes dois modos. Será o triângulo uma ideia adventícia? Como explicar então a sua perfeição? Será uma ideia factícia? Como explicar nesse caso a sua universalidade? E a ideia de Deus? Como explicar que seres finitos e imperfeitos como os homens são, possam ter a ideia de um ser infinito e absolutamente perfeito? 
A resposta de Descartes é a de que para além das ideias adventícias e factícias os homens possuem ideias inatas, ideias que, nascidas connosco, são como que a marca do criador no ser criado à sua imagem e semelhança.
Estas ideias inatas, claras e distintas, não são inventadas por nós mas produzidas pelo entendimento sem recurso à experiência. Elas subsistem no nosso ser, em algum lugar profundo da nossa mente, e somos nós que temos liberdade de as pensar ou não. Representam as essências verdadeiras, imutáveis e eternas, razão pela qual servem de fundamento a todo o saber científico.
Como Descartes escreve: “(...) quando começo a descobri-las, não me parece aprender nada de novo, mas recordar o que já sabia. Quero dizer: apercebo-me de coisas que estavam já no meu espírito, ainda que não tivesse pensado nelas. E, o que é mais notável, é que eu encontro em mim uma infinidade de ideias de certas coisas que não podem ser consideradas um puro nada. Ainda que não tenham talvez existência fora do meu pensamento elas não são inventadas por mim. Embora tenha liberdade de as pensar ou não, elas têm uma natureza verdadeira e imutável.”
Méditations Métaphysiques, “Méditation cinquième”, p. 97-99.
Quais são então as ideias inatas? Fundamentalmente os conceitos matemáticos e a ideia de Deus.
Num texto dirigido à princesa Elisabeth, Descartes escreve (1645):
“A primeira e a principal [das ideias inatas] é que há um Deus de quem todas as coisas dependem, cujas perfeições são infinitas, cujo poder é imenso, cujos decretos são infalíveis...”
Como diz Koyré: “Do desmoronamento das suas primeiras certezas, Descartes apenas salvará as que não dependem da filosofia: a crença em Deus e na Matemática.”
Este inatismo traduz a profunda confiança que Descartes tem na razão. Fonte de todo o conhecimento seguro e verdadeiro, faculdade universalmente partilhada, a razão ou bom senso é aquilo que define o homem como homem, o que o distingue dos outros animais.
"O bom senso é a coisa que, no mundo, está mais bem distribuída: de facto, cada um pensa estar tão bem provido dele, que até mesmo aqueles que são os mais difíceis de contentar em todas as outras coisas não têm de forma nenhuma o costume de desejarem [ter] mais do que o que têm. E nisto, não é verosímil que todos se enganem; mas antes, isso testemunha que o poder de bem julgar, e de distinguir o verdadeiro do falso que é aquilo a que se chama o bom senso ou a razão, é naturalmente igual em todos os homens; da mesma forma que a diversidade das nossas opiniões não provém do facto de uns serem mais razoáveis do que outros, mas unicamente do facto de nós conduzirmos os nossos pensamentos por vias diversas, e de não considerarmos as mesmas coisas."
Descartes, Discurso do Método, I Parte, ed. cit., p. 11.
Mas, de que maneira opera a razão? Afastada a hipótese de se fazerem conjecturas com base nos sentidos que só poderiam conduzir-nos a um conhecimento provável e incerto, as operações da razão que conduzem à verdade e à certeza são apenas duas: a intuição e dedução.

A intuição, é portanto, um acto puro e atento da inteligência que apreende directa e imediatamente noções tão simples que acerca da sua validade não pode restar qualquer dúvida. Assim, o que caracteriza a intuição é a sua clareza e distinção, o seu caracter imediato, o facto de constituir um acto de apreensão total e completa.
Fruto de uma singularidade meditativa, a intuição é o fundamento do seu individualismo subjectivista. Como Descartes escreve: “Entre os quais [os pensamentos que me ocupavam], um dos primeiros foi que me lembrei de considerar que, muitas vezes, não há tanta perfeição nas obras compostas por várias peças, e feitas pela mão de diversos mestres, quanto naquelas em que um só trabalhou. Desta forma vemos que os edifícios que um só arquitecto empreendeu e acabou, são habitualmente mais belos e melhor ordenados, do que aqueles que vários tentaram compor, servindo-se de velhas paredes que tinham servido para outros fins. Assim, essas antigas cidades que, não tendo sido de início senão pequenos burgos, tornaram-se, com o passar do tempo, grandes cidades, são geralmente tão mal ordenadas em comparação com essas praças regulares que um engenheiro traça à sua fantasia numa planície que, ainda que considerando os seus edifícios um por um, encontramos neles tanta ou mais arte do que nos das outras (...).”
Descartes, Discurso do Método, II Parte, ed. cit., p. 18.
A construção do edifício do saber só é possível a partir de projectos unitários, solitariamente concebidos e ordenadamente aplicados.
A dedução é, em primeiro lugar, um encadeamento de intuições. Ela pressupõe portanto a intuição das ideias simples e das relações existentes entre elas das quais conclui, necessariamente, outras ideias e relações, como consequências lógicas das anteriores.
A dedução estabelece um encadeamento entre as proposições, um nexo lógico de antecedente e consequente de tal modo que a verdade do antecedente exige a verdade do consequente. Assim, a dedução permite construir uma relação necessária entre as proposições de tal modo que a verdade das proposições intuitivas possa passar para a conclusão. Nesse sentido, é necessário partir de verdades evidentes para depois, dedutivamente, descobrir todas as outras ainda não conhecidas e, assim, alcançar o conhecimento verdadeiro.
Olga Pombo in educ.fc.ul.pt