Bachelard e o senso comum

"Pareceu-me sempre cada vez mais evidente (...) que o espírito científico contemporâneo não podia ser colocado em continuidade com o simples bom senso, que este novo espírito científico representava um jogo mais arriscado, que ele formulava teses que inicialmente podem chocar o senso comum. Nós acreditamos, com efeito, que o progresso científico manifesta sempre uma ruptura, perpétuas rupturas, entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, desde que se aborde uma ciência evoluída, uma ciência que, pelo facto mesmo das suas rupturas, traga a marca da modernidade. (...) Podemos, pois, colocar a descontinuidade epistemológica em plena luz (...)
A própria linguagem da ciência está em estado de revolução semântica permanente.
Às vezes o epistemólogo continuista é enganado quando ele julga a ciência contemporânea por uma espécie de continuidade das imagens e das palavras. Quando foi necessário imaginar o inimaginável domínio do núcleo atómico, propuseram imagens e fórmulas verbais que são inteiramente relativas à ciência teórica. Não se deve tomar essas fórmulas verbais ao pé da letra e dar-lhes um sentido directo. Uma constante transposição da linguagem rompe, então, a continuidade do pensamento comum e do pensamento científico. Sem cessar, é preciso recolocar as expressões novas na perspectiva das teorias, que as imagens e as fórmulas resumem. Tal é o caso, por exemplo, da imagem que Niels Bohr apresentou para condensar certas leis do núcleo atómico sob o nome de ‘gota de água’. Esta imagem ‘ajuda admiravelmente a compreender o como e o porquê da fissão’ (...). Sob a capa desta imagem da ‘gota’ onde se aglomeram os núcleos, poder-se-ia dizer que a incorporação de um neutrão suplementar aumenta a energia interna do núcleo, por outras palavras, a ‘temperatura’ do núcleo. Mas, as palavras ‘gota’ e ‘temperatura’ devem ser colocadas entre aspas. (...)
Não há, pois, nenhuma continuidade entre a noção da temperatura do laboratório e a noção da ‘temperatura’ de um núcleo. A linguagem científica é, por princípio, uma neolinguagem." 
Bachelard in O Materialismo racional