O carácter cumulativo da ciência - J. R. Oppenheimer

É essencial da própria noção de cultura e de tradição o haver um aspecto cumulativo na vida do homem. O passado está na base do presente, que restringe e modera e que de certo modo limita e de certo modo enriquece. Compreendemos melhor Shakespeare se tivermos lido Chaucer, e Milton se tivermos lido Shakespeare. Apreciamos mais Trevelyan se conhecermos Tucydides. Vemos Cézanne com melhores olhos se tivermos olhado também para Vermeer, e compreendemos muito mais completamente Locke se conhecermos Aristóteles, e S. Mateus se tivermos conhecido Job. Mas na realidade só raras vezes trazemos o conhecimento do que precede em auxílio dos primeiros contactos com o que veio depois; e se é verdade que Job lança luz sobre Mateus, é também certo que Mateus lança luz sobre Job. Podemos compreender muito do que hoje se escreve, conhecendo pouco, explicitamente, do que se escreveu no passado. Podemos saber, e sabemos, muito do que Shakespeare quer dizer e pretende, sem nenhum conhecimento daqueles homens que vieram antes dele e que modificaram e educaram a sua sensibilidade.
O carácter cumulativo da ciência é muito diferente e muito mais essencial. É essa uma das razões da grande dificuldade de compreender qualquer ramo da ciência em que não se seja largamente versado — a ciência, de que Hobbes escreveu: «É de natureza tal, que só quem a adquiriu em boa medida, pode compreendê-la como é» [Leviathan].
Para isto há pelo menos duas razões: uma refere-se à relação que existe entre as descobertas mais recentes da ciência e as que as precederam, e a outra refere-se ao uso que se faz dos trabalhos científicos antes realizados, como instrumentos de progresso. Quando se descobre qualquer coisa nova acerca do mundo natural, isso não substitui o que se conhecia anteriormente; transcende-o, e transcende-o porque estamos num novo domínio da experiência, muitas vezes tornado acessível devido apenas à utilização integral do saber a ele anterior. A obra de Huygens and Fresnel sobre as propriedades ondulatórias da luz é tão necessária, hoje, como sempre o foi, ainda que saibamos que há propriedades da luz que ficam fora das suas explicações e da sua experiência, propriedades que, no campo dos acontecimentos atómicos, são decisivas. A lei da gravitação de Newton e as suas equações do movimento aplicam-se a imensos âmbitos da experiência física e estão na sua base, e não passaram a ser errados pelo facto de em outras e mais vastas esferas terem de ser subtituídas pelas leis mais gerais de Einstein. A teoria química da valência foi explicada, esclarecida e em certo grau, não muito elevado, alargada por uma interpretação feita em termos de electrões e núcleos, do que se passa na união química; mas a teoria química da valência não foi substituída, e é de presumir que seja usada enquanto o interesse do homem pela química continuar a existir. Os fundamentos do facto bruto e as leis que o descrevem subsistem ao longo de todo o curso da ciência, sujeitos a aperfeiçoamentos mais finos e adaptados a novos casos, mas sem nunca se poderem ignorar ou pôr de parte.
Mas isto é apenas parte da questão. No progresso da ciência repete-se constantemente o facto de aquilo que era ontem objecto de estudo, com interesse em si próprio, passar a ser hoje qualquer coisa que se aceita sem discussão, qualquer coisa compreendida e de confiança, qualquer coisa sabida e familiar — um instrumento para posteriores investigações e descobertas. Às vezes o novo instrumento que se utiliza para alargar a experiência é um fenómeno natural, só escassamente caracterizado ou controlado pelo experimentador. É-nos familiar o uso de cristais de calcite na obtenção de dois feixes diferentes de luz polarizada. Sabemos que os raios cósmicos são tanto um objecto de investigação em si como um instrumento de poder presentemente sem igual na pesquisa das propriedades e transmutações da matéria primordial na terra e no laboratório. Às vezes o que já se sabe corporiza-se não num fenómeno natural mas numa invenção ou em complicadas pirâmides de invenção — numa nova técnica.
Há muitos exemplos bem conhecidos e significantes de progressos técnicos realizados durante a última guerra, que vieram servir de instrumentos ao investigador do mundo físico e biológico. Podemos recordar dois: o radar — geração, controle e detecção de micro--ondas, ondulações electromagnéticas de relativamente curto comprimento de onda — desempenhou um papel célebre na Batalha da Grã-Bretanha. Desde então, forneceu novos meios potentes de investigação de problemas atómicos, moleculares e até nucleares, a partir de que, na realidade, se têm realizado descobertas delicadíssimas relativas às leis das interacções de electrões, e protões, e neutrões.
O reactor nuclear incorpora na sua técnica própria noções bem recentemente adquiridas sobre os processos de fissão do urânio e o comportamento de neutrões nas suas colisões com núcleos atómicos; é hoje um instrumento de alto valor, cujas radiações, controladas e bem interpretadas, nos estão a dizer alguma coisa acerca das propriedades da matéria, que até aqui eram quase inacessíveis. Grande profusão de substâncias radiactivadas por meio de reactores atómicos, permitem-nos seguir o curso de átomos individuais em transformações químicas e biológicas. Em biologia, especialmente, podem elas ser um contributo trazido às nossas facilidades instrumentais e às nossas técnicas, só comparáveis em importância ao microscópio.
J. Robert Oppenheimer in Ciência e Saber Comum, p. 29-32