Há incompatibilidade entre a ciência e a religião?

Embora tenha havido grandes percursores na Antiguidade como o grego Arquimedes de Siracusa, desde o tempo de Galileu que é possível definir ciência como a descoberta do mundo recorrendo à razão, à observação e à experimentação. É desde essa altura que se sabe que a observação e a experimentação permitem decidir se uma dada hipótese a respeito do mundo está errada. O reconhecimento do erro logo que haja evidência suficiente para ele tem assegurado à ciência uma notável capacidade de progressão ao longo dos tempos, já que vão sobrevivendo, transformando-se em teses, as hipóteses que não são dadas como erradas. A ciência tem um carácter cumulativo que lhe confere estabilidade e continuação. Como o mundo natural é só um, a ciência, em progresso permanente, é só uma. Ao usar uma metodologia universal, a ciência é um empreendimento partilhado por toda a humanidade. Pode haver discussão e polémica quando se está a apurar do erro, mas o resultado que emerge acaba por ser partilhado por todos.
Em contraste, a religião não assenta no mesmo tipo de racionalidade, nem na observação e na experimentação, mas sim na fé, a crença que é obtida pela “graça” ou “revelação”. Essa atitude representa um salto: há uma certa descontinuidade do natural para o sobrenatural (outro nome para o transcendente). Baseia-se em dogmas que, em geral, têm uma tradição histórica muito profunda e que não podem ou muito dificilmente podem ser revistos e muito menos descartados. São partilhados por uma comunidade que tem a mesma tradição. Nas chamadas “religiões do livro” (Cristianismo, Judaísmo, Islamismo) esses dogmas estão escritos num livro sagrado (a Bíblia, o Tora, e o Alcorão). Se uma pessoa ou comunidade quiser rever os dogmas da sua religião, a sua atitude não será muito religiosa. Nem há, aliás, mecanismos que permitam efectuar essa revisão. Em religião, a ênfase recai, por isso, mais na verdade, que há que preservar, do que no erro, que há que substituir. Como há diferentes comunidades com diferentes tradições, existem diversas religiões, com diferentes verdades, cuja unificação é na prática impossível.
Galileu, ao defender as ideias do monge polaco Nicolau Copérnico, compreendeu melhor a posição que o homem ocupa no mundo, mais precisamente a posição do nosso planeta no sistema de planetas à volta do Sol. A tensão entre ciência e religião surgiu precisamente quando a astronomia, baseada na observação realizada com esse novo instrumento que era o telescópio, colocou em causa cosmogonias antigas, designadamente o modelo cosmológico de Aristóteles e Ptolomeu, um produto de observações ancestrais que a Igreja Católica tinha conciliado com o texto bíblico ao longo de toda a Idade Média. É bem conhecido o julgamento de Galileu (um homem profundamente crente e até bem relacionado com a hierarquia da Igreja Católica), no Tribunal da Inquisição de Roma, em 1633, em que ele se viu obrigado a abjurar das ideias de Copérnico, por elas contrariarem certos passos bíblicos. Demorou alguns séculos até, quase nos nossos dias, o Papa João Paulo II ter de certo modo revogado a sentença proferida contra Galileu, ao admitir, embora não de uma forma muito explícita, que o procedimento eclesial não tinha sido o mais adequado. O problema ficou assim resolvido e, neste momento, não há sombra do “caso Galileu”: já foi até proposta uma estátua a Galileu nos jardins do Vaticano...
Importa sublinhar que a ciência moderna surgiu no contexto do pensamento cristão e católico. Não se deu no quadro cultural do judaísmo ou do islamismo, nem no quadro de outras religiões, como o budismo oriental, mas sim no quadro do cristianismo, em particular da Igreja Católica, sediada em Roma. As observações astronómicas de Galileu, realizadas em 1609, foram confirmadas por observações efectuadas por vários sábios jesuítas, incluindo um dos maiores jesuítas desse tempo, o astrónomo alemão Cristophorus Clavius. Clavius, que foi estudante no Colégio das Artes em Coimbra e admirador do nosso matemático e astrónomo Pedro Nunes antes de ter se ter tornado astronómo do Colégio Romano, ficou amigo de Galileu quando este, ainda muito jovem, o procurou em Roma. Contudo, nunca chegou a partilhar com ele a defesa do sistema copernicano. Em sua defesa poder-se-á dizer que talvez não houvesse na época evidência suficiente em abono da hipótese heliocêntrica, que a Igreja estava aliás disposta a aceitar na condição de ela ser considerada uma mera hipótese e não uma hipótese transformada em tese por virtude de observações comprovadas.
Galileu soube defender-se bem das acusações que lhe foram feitas. Quando fez notar na sua famosa carta à Grande Duquesa Cristina que "a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como ir para o céu e não como o céu se move", estava a citar, como convinha, um alto dignitário da Igreja, o cardeal Baronius, bibliotecário do Vaticano e grande historiador da Igreja. Tinham já ocorrido antes, em várias ocasiões ao longo da história, contradições flagrantes entre a Bíblia e o conhecimento científico, mas elas tinham sido, em geral, acomodadas pelos religiosos mais esclarecidos. Por exemplo, há vários passos na Bíblia que afirmam ou sugerem que a Terra é plana, o que levou alguns antigos padres da Igreja a rejeitar o conhecimento grego de que a Terra era uma esfera (o grego Eratóstenes chegou a medir com razoável precisão o raio da Terra, por meio de uma experiência terrestre). No entanto, numerosos cristãos cultos aceitaram a forma esférica da Terra muito antes das viagens de circumnavegação, como a do português Fernão de Magalhães, que se efectuarem pouco antes do nascimento da ciência moderna.
O inglês Isaac Newton afirmou no início do século XVIII, citando aliás sem o reconhecer um obscuro monge medieval, que se conseguiu ver mais longe é “porque estava aos ombros de gigantes”. Por cima dos ombros de Galileu (que, por sua vez, já tinha subido, tal como o astrónomo alemão seu contemporâneo Johannes Kepler, aos ombros de Copérnico) elevou-se Newton, que era também profundamente religioso, cristão embora anglicano (o movimento da Reforma tinha obtido um impacte maior nos países da Europa do Norte). Para Newton não havia dúvidas de que o Universo era obra divina, pelo que não se coibiu de repetir várias vezes, na sua obra maior, o nome de Deus. Na acalorada discussão que sustentou depois com o filósofo alemão Gottfried Leibniz, o problema não era tanto a existência de Deus, um dado adquirido para os dois, mas mais o papel de Deus no mundo: para Newton havia um Deus “obreiro” e para Leibniz um Deus “preguiçoso”, que descansava eternamente depois de ter realizado no curto tempo da Criação a Sua obra. Nesse tempo, as discussões eram, como se vê por este exemplo, simultâneamente científicas e teológicas. No entanto, a ideia de um mundo que funciona sozinho, entregue às leis naturais, um mundo que evolui sob a acção de forças conhecidas ou pelo menos passíveis de serem conhecidas, tornou-se muito tentadora após a publicação dos Principia Mathematica de Newton. Ficou famosa a resposta do matemático e astrónomo francês Pierre Laplace, um grande divulgador das ideias de Newton em França e, além disso, um denodado continuador delas, à pergunta do imperador francês Napoleão Bonaparte sobre a posição de Deus no seu sistema do mundo?”Sir, não tive necessidade dessa hipótese”. Após Galileu, e ainda mais após Newton, passou-se a viver o tempo da separação da ciência e da religião.
O momento mais alto da tensão entre ciência e religião levantou-se em pleno no século XIX. A tensão, que deixou sequelas até aos dias de hoje, já não diz respeito à posição da Terra no mundo, mas sim à posição da vida da espécie humana,q ue povoa a Terra, na longa história da vida: é a questão da evolução das espécies, na qual o homem se integra, que foi pela primeira vez compreendida pelo biólogo inglês Charles Darwin a meio do século XIX. Ao contrário do “caso Galileu”, o “caso Darwin” ainda hoje perdura, como mostra as discussão sobre o criacionismo que têm particular foco nos Estados Unidos da América. Darwin, que estudou Teologia em Cambridge, passou numa fase tardia da vida de anglicano a agnóstico, uma palavra que surgiu nessa época, levado decerto pela sua visão que adquiriu do mundo natural. Na Origem das Espécies e nos seus outros livros, o sábio inglês dispensou a criação especial de cada espécie, uma vez que elas são mutáveis, e evoluem umas das outras, e disse que o homem não tinha um lugar especial fora da grande árvore da vida, sendo antes o resultado de milhões e milhões de anos de evolução. Não é aqui o lugar para aprofundar esta visão, pelo que fica só dito que, tal como no tempo de Galileu, houve no tempo de Darwin um embate entre a palavra da Bíblia, baseada na revelação, e os resultados da ciência, baseados na razão, na observação e na experimentação. Apesar de alguma controvérsia perdurar, a teoria da evolução não tem hoje qualquer rival científico que consiga dar conta da prodigiosa quantidade de dados da biologia.
Há incompatibilidade entre a ciência, física, biológica ou outra, e a religião? Penso que não. Mas, para que não haja, como bem mostram os casos de Galileu e de Darwin, tem de se abandonar a ideia de que a Bíblia é um livro de ciência. Não o é claramente, já que o seu conteúdo não resultou do método científico, tendo antes a ver com a crença no transcendente fundada por uma tradição secular. O Génesis é um livro simbólico e poético, escrito por vários autores ao longo de muitos anos, que deve ser lido no respectivo contexto e não interpretado de forma literal. O criacionismo, a visão da origem do mundo vivo e do homem baseada no primeiro livro da Bíblia, não faz o mínimo sentido do ponto de vista científico.
Em reforço dessa compatibilidade vem o facto de que se pode ser crente e ao mesmo tempo cientista, tal como é patente nos casos dos “gigantes” Galileu e Newton. Muitos exemplos da história da ciência e da ciência contemporânea mostram à saciedade que pode ser pacífica a coexistência de ciência e religião. Não penso que a crença religiosa de um cientista o limite na prática da sua actividade científica, que, por exemplo, lhe retire qualidade na ciência que faz. Um cientista sabe que, quando está num laboratório, não está numa igreja e que, quando está numa igreja, não está num laboratório. Claro que haverá sempre excepções que confirmarão esta regra...
É interessante, a propósito, referir os casos de sacerdotes que são também cientistas. A Igreja Católica possui um Observatório Astronómico, que é dirigido por um padre jesuíta, de certo modo um descendente do Padre Clavius, e no qual se faz trabalho científico moderno, designadamente a observação de asteróides. Por outro lado, o pastor anglicano inglês John Polkhingorne é físico de partículas e um conhecido divulgador da ciência. Um bom exemplo não já de um sacerdote, mas de um cristão fervoroso, que trabalha nas fronteiras da área da biologia, é o norte-americano Francis Collins, um dos cientistas mundialmente mais conceituados no campo da genética, que foi nomeado por Barack Obama Presidente do National Institute of Health, NIH, a maior agência de investigação médica dos Estados Unidos.
Assim como Darwin se tornou agnóstico, muitos outros cientistas, a partir do século XIX, declararam-se agnósticos ou mesmo ateus. Há hoje, de facto, muitos cientistas que não são crentes, assumindo alguns deles essa descrença com alguma militância: é o caso do físico norte-americano e Prémio Nobel da Física Steven Weinberg ou do biólogo inglês Richard Dawkins, autor de O Relojoeiro Cego, um livro notável que realça o papel do acaso no processo da evolução, e de A Desilusão de Deus, um livro que alguns consideram uma “cruzada” contra a religião.
A história da ciência mostra que a fé e a falta dela se encontram distribuídas pelos cientistas tal como pelos não cientistas. Assim, a crença em Deus não pode ser encontrada no fundo de um telescópio ou de um microscópio, tendo antes a ver com intrincados factores culturais, sociológicos e psicológicos. Deparei na Internet com uma curiosa estatística sobre a religião de 100 cientistas considerados muito influentes: a conclusão é que existem 16 por cento de judeus (o número grande de cientistas judeus poderá ser explicado pela forte valor atribuído à educação e ao conhecimento no seio das famílias judaicas), 12 por cento de católicos e 11 por cento de ateus, não havendo quase cientistas árabes (o que poderá ser explicado pelo maior dogmatismo dos adeptos desta religião, para quem o livro sagrado não foi inspirado por Deus mas sim ditado directamente por Ele). Sendo os cientistas pessoas e cidadãos antes de serem cientistas, é natural que na comunidade que eles formam se encontrem as mesmas proporções, ou proporções semelhantes, de crença ou descrença que se encontram na sociedade em geral e ainda que se encontrem as mesmas afiliações religiosas patentes na sociedade em que estão inseridos.
O tema das relações entre ciência e religião dá pano para muitas mangas. Tem sido uma discussão continuada sem fim à vista. Quando se quer enfatizar uma eventual oposição entre ciência e religião, encontramos cientistas a usar argumentos não-científicos e não-cientistas a avançarem argumentos científicos. Claro que a autoridade de um cientista na sua ciência não lhe confere particular autoridade num qualquer assunto não-científico. E julgo que o mesmo vale para a teologia. A autoridade de um teólogo na sua área não lhe permitirá ter qualquer poder especial no debate científico.
De entre todos os cientistas o caso do físico suíço e norte-americano de origem alemã Albert Einstein é algo especial dada não só a “aura” que ele ganhou nos média (a revista Time considerou-o a pessoa mais famosa do século XX) como a peculiar visão religiosa que ele advogou: esse “gigante” que subiu para os ombros de Newton substituiu, à maneira do filósofo holandês de origem portuguesa Bento Espinosa, Deus pela “harmonia cósmica”. Os dois podem, por isso, ser considerados judeus heterodoxos (como é sabido, Bento Espinosa foi excomungado por heresia). Vale a pena explicitar o pensamento de Einstein sobre o transcendente. Em 1929, o rabino norte-americano de Nova Iorque colocou a Einstein por via telegráfica uma pergunta que procurava esclarecer a posição anti-relativista do arcebispo católico de Boston segundo o qual a “relatividade era uma especulação confusa, que produz a dúvida universal sobre Deus e a sua criação”. A resposta em menos de 50 palavras (o rabino tinha pré-pago a resposta com esse limite preciso!) ficou famosa:
”Acredito no Deus de Espinosa, que se revela na ordem harmoniosa daquilo que existe e não num Deus que se interesse pelo destino e pelos actos dos seres humanos”.
Já antes Einstein, que, apesar da sua origem judaica e de ter advogado a causa sionista, nunca acreditou num Deus pessoal como o que está omnipresente ao longo do Antigo Testamento, tinha respondido assim a uma pessoa que lhe perguntou se era religioso:
“Sim, sou, pode dizer isso. Tente penetrar, com os seus recursos limitados, nos segredos da Natureza, e o senhor descobrirá que, por detrás de todas as concatenações discerníveis, resta algo de subtil, intangível e inexplicável. A veneração dessa força, que está além de tudo o que podemos compreender, é a minha religião. Nessa medida, sou realmente religioso”.
Einstein estudou a questão não só da estrutura como da história do Universo e é com base na sua teoria da relatividade geral da sua autoria que hoje se defende a teoria do Big Bang, uma teoria de evolução cósmica, que de certo modo prolonga a escalas espacial e temporal muito maiores o fenómeno da auto-organização que está subjacente à teoria da evolução das espécies (nessa mesma linha, o padre jesuíta Teilhard de Chardin partiu dos seus trabalhos de paleontologia humana para se aventurar nos caminhos de uma filosofia da Criação). Pode-se perguntar: Quando se discutem (ou quando se testam, como hoje acontece nos maiores telescópios do mundo ou no maior acelerador de partículas, o Large Hadron Collider, no Laboratório Europeu de Física Nuclear, CERN, em Genebra, na Suíça) os primeiros instantes do Universo, estará o homem a procurar esclarecer como foi a intervenção divina no momento da Criação? Pode Deus ser encontrado no telescópio ou no acelerador?
Não pode, porque, nunca é demais repeti-lo, ciência e religião são actividades distintas, com sentidos distintos. A ideia de que houve um Big Bang, isto é, o início do espaço-tempo, tem hoje uma base científica, tanto lógica como empírica, bem consolidada. Neste momento, não existe uma teoria alternativa à do Big Bang que se revele minimamente consistente, tal como não há uma teoria alternativa à da evolução das espécies desenvolvida por Darwin. Apesar de alguma concordância com o texto do Génesis, que narra a Criação do mundo, a ideia do Big Bang não tem uma base religiosa. O facto de essa ideia moderna coincidir, embora de uma maneira geral e vaga, com a ideia da criação da Igreja Católica (e, aliás, de outras igrejas), é, sem dúvida, curioso, mas não mais do que isso... Coincidência é também o facto de um dos autores da teoria do Big Bang ter sido o astrofísico belga Georges Lemaître, um sacerdote católico. Alguns altos dirigentes católicos congratularam-se com o que chamaram a “base científica” da criação descrita na Bíblia. Mas, mais uma vez, desde Galileu que a Bíblia deixou de poder ser considerado um livro de ciência. Os astrofísicos, de qualquer religião ou sem religião nenhuma (agnósticos ou ateus), não exercem o seu ofício com base na Bíblia nem têm o intuito de confirmarem a palavra da Bíblia. Nem pretendem agradar ao Papa ou a qualquer outro líder religioso. Observam minuciosamente o céu com os telescópios de que dispõem, instrumentos muito superiores aos que Galileu usou há quatrocentos anos, e realizam, na Terra, sofisticadas experiências que recriam, ainda que por breves tempos e em pequenos espaços, condições que muito provavelmente existiram por todo o lado no cosmos primitivo (ao contrário do que por vezes é difundido, o Universo não partiu de um ponto, mas foi sempre infinito desde o seu início, passando de uma situação de grande densidade de energia para outras em que essa densidade é cada vez menor). As suas conclusões, por absoluta falta de informação observacional ou experimental, nada nos dizem sobre o que se terá passado antes do Big Bang. A questão sobre a causa deste evento primordial é perfeitamente legítima, mas não pode ser respondida pela ciência actual e provavelmente nunca poderá vir a ser respondida pela ciência futura. Os astrofísicos não podem - nem aliás querem - provar a existência ou a inexistência de Deus. O astrofísico inglês contemporâneo Stephen Hawking, o autor de Breve História do Tempo, figura mais conhecido no grande público pelas suas limitações físicas do que pelos seus conhecimentos de física, e alguns dos seus colegas falam, de facto, de Deus nos seus escritos ou nas suas palestras, mas trata-se, nesses autores, de uma metáfora, uma imagem que eles sabem ter muita força e que se destina a suscitar as atenções gerais. No entanto, essa imagem pode ser perigosa ao dar a entender que existe uma mistura íntima entre ciência e religião. A mediatização conseguida com a ajuda da palavra “Deus” mostra não tanto que quem a profere é crente mas mais que alguns cientistas são bons comunicadores...
Prefiro não fundir ou confundir ciência e religião, mas procurar pontes entre elas. Por exemplo, a ligação entre as duas actividades humanas pode ser conveniente ou mesmo necessária para assegurar a sobrevivência do homem no seu planeta, prosseguindo a árvore da vida. Essa ideia ficou bem expressa pelo astrofísico norte-americano Carl Sagan, um agnóstico que procurou alianças da ciência com a religião em benefício do homem e da Terra, com o objectivo da sobrevivência de ambos, num tempo em que a espécie humana tem a capacidade de se auto-destruir. Ele achava que a paz era um valor que devia ser perseguido tanto pela ciência como pela religião. E que o amor, um valor defendido pela Igreja Católica assim como pela generalidade das igrejas, era essencial para conseguir a paz. Proferiu, em defesa da paz, uma frase que evoca os grandes vazios siderais: “Se um ser humano não concordar contigo, deixa-o viver em paz. Não vai encontrar outro igual em cem milhões de galáxias”. 
O mesmo Sagan, no seu livro As Variedades da Experiência Científica, respondeu aqueles que acusam os cientistas de arrogância, ao mesmo tempo que procurou ligar ciência e religião:
“Será que tentar perceber de alguma maneira o universo revela uma certa falta de humildade? Creio que é verdade que a humildade é a única resposta adequada perante o universo, mas não uma humildade que nos impeça de procurar descobrir a natureza do universo que estamos a admirar. Se procurarmos essa natureza, então o amor pode ser inspirado pela verdade, em vez de se basear na ignorância ou na auto-ilusão. Se existe um Deus criador, será que Ele ou Ela ou Isso ou seja qual for o pronome apropriado preferiria uma espécie de cepo embrutecido que o adorasse sem nada compreender? Ou preferiria que os seus devotos admirassem o universo real em toda a sua complexidade? Quanto a mim, parece-me a ciência é, pelo menos parcialmente, adoração informada.”
Carlos Fiolhais in dererummundi.blogspot.pt