Eu, o outro, o tempo e o sofrimento

O tempo do sofrer A questão do sofrimento reveste-se de uma dimensão ética e filosófica a partir do momento em que se encontram, no mesmo afecto, a passividade do sofrer, sofrido, até mesmo infligido pelo outro e uma exigência de sentido. Aqui estamos um pouco além da caracterização inicial do sofrer como cogito absoluto, cogito sem cogitatum. Sofro, sem que haja um «alguma coisa» de que sofro; se o sofrimento é de uma certa forma sem «objecto», não será ele sem «porquê?». Ele não é somente sentido mas também julgado como uma figura do mal. O que exige justificação é, por um lado, o sentimento de que o sofrimento não se limita a ser, mas que ele é algo em excesso; sofrer, é sofrer demasiado; é por outro lado o sentimento de que todo o mal não é mal de falta, mal «moral» (é de novo no caminho desta questão que é preciso ajudar o outro que sofre a ser implicado), mas no sentido leibniziano, mal «físico», isto é, que existe na «natureza», sem ter a sua justificação na ordem moral; dito de outra forma, é preciso desintrincar o ser vítima do ser culpado. Não podemos deixar de evocar aqui a discussão do Livro de Job: se a causa desse herói bíblico adquiriu o valor paradigmático, que sabemos, é porque ele despedaça todo o sistema de pensamento – a famosa teoria da retribuição – de que resultaram as teodiceias que visam justificar todo o sofrimento como merecedor de punição, poena; no termo deste desmantelamento, o mal sofrido revela-se irredutível ao mal cometido. Vítima, mas não culpado, proclama Job. E todavia, se chamamos mal – mal sofrido, ainda assim mal – ao sofrimento, é porque ele partilha com a falta o facto de se apresentar como qualquer coisa que é mas que não deveria ser. O momento filosoficamente significativo consiste neste nó do ser e do dever ser, no próprio núcleo do afecto do sofrer (Jérôme Porée). É assim que o sofrimento carrega toda a dor 8 até ao limite da axiologia: ele é, mas não merece ser. Donde resulta a questão: porque razão existe o que não deveria ser? A questão moral torna-se aqui questão metafísica. No que diz respeito à segunda vertente, diria o seguinte: o sofrimento interpela. O paradoxo da relação a outrem aparece aí, posto a nu: por um lado, sou eu que sofre e não o outro: os nossos lugares são insubstituíveis; talvez mesmo eu seja «escolhido» para sofrer, de acordo com a fantasia do inferno pessoal; por outro lado, apesar de tudo, apesar da separação, o sofrimento emanado da queixa é apelo ao outro, exige ajuda – exigência talvez impossível de satisfazer de um sofrer com e sem reserva; uma tal compaixão é, sem dúvida, o que não poderíamos dar. Aproximo-me aqui das notas de Jean-Jacques Kress relativamente à exigência de «parcimónia». A parcimónia pode ser uma regra que nos impomos enquanto cuidadores mas é igualmente um limite que nós próprios sofremos, no sentimento de não poder responder efectivamente ao que designámos um sofrer com sem reservas. O sofrimento marca aqui o limite do dar e receber. Não obstante permanece, como uma tímida esperança, a convicção arriscada e talvez insensata, de que o mundo poderia ser melhorado através do que Jan Patocka chamava nos seus últimos escritos a «solidariedade dos enfraquecidos». Qualquer que seja a solução desses enigmas, um humor é proibido aos fenomenólogos e aos psiquiatras, a saber, o optimismo que alguém definiu um dia como a caricatura de uma esperança que não tivesse conhecido as lágrimas. Para acaba, encontramos o primeiro sentido de sofrer, a saber, suportar, isto é, perseverar no desejo de ser e no esforço para existir apesar de… É este «apesar de…» que delineia a última fronteira entre a dor e o sofrimento, mesmo quando eles habitam o mesmo corpo.
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